Os trabalhadores alegam que as demissões, cujo fato motivador foi a paralisação na segunda (03/08), da qual originou o fechamento dos portões da garagem devido a insegurança que estava na cidade, com números altos de assaltos, sendo que até mesmo os bancos decidiram não abrir naquele dia, teria sido uma forma de perseguição como resultado da greve de 2014.
A posição assumida pelo representante do Ministério Público do Trabalho requer um debate público. Ora, a justa causa não se avalia no vácuo, fora de um contexto, que leve em consideração também todo o histórico da relação de trabalho, chegando-se a ela apenas em situações de extrema gravidade, onde a persistência do vínculo seja totalmente inviabilizada, para que não se transforme em mero instrumento de poder do empregador sobre os trabalhadores, já fragilizados pela ausência de garantia contra dispensa arbitrária, segundo a posição majoritariamente assumida pelos tribunais. Sobretudo há de se tomar cuidado em considerar justa causa atos cometidos pelos trabalhadores durante um conflito de interesses entre empregados e patrão deflagrado no ambiente de trabalho, pois neste instante as ações tendem a ser fora dos padrões da normalidade da vida burocratizada, notadamente dos trabalhadores, eis que pretendem demonstrar que possuem alguma força, para que sejam, de fato, ouvidos.
Como já manifestado em outro texto[1], há uma racionalidade específica para a avaliação das condutas durante a greve:
"Durante a greve, com extensão para todas as situações presentes e futuras que a ela se relacionam, os direitos e as obrigações que foram estabelecidos para a estabilização das relações individuais de trabalho não têm aplicação, com a mesma potencialidade, durante a greve, pois o direito não existe em tese e não incide no vácuo.
Ora, as atitudes dos trabalhadores, no exercício da greve ou na construção da consciência coletiva para se implementar uma luta coletiva por melhores condições de trabalho, não podem ser avaliadas como se estivessem em momento de conflito contido. Não é racional pressupor que dirigentes sindicais ou líderes do movimento se dirijam aos demais trabalhadores neste momento de tensão sem exprimir palavras de ordem, sem proferir discursos inflados e sem a demonstração de que seus atos correspondem às suas falas. Se nem mesmo nas discussões no Congresso, no Supremo, nas Assembleias Legislativas o tom é, digamos assim, nobre e cordial, ainda que as manifestações sejam antecedidas por um “vossa excelência”, por que o deveriam ser as que se proferem em caminhões de som por ocasião de uma greve?
O modo como tem sido entendida juridicamente a greve confere, ademais, uma posição extremamente cômoda ao empregador, sendo que a greve seria, exatamente, para retirá-lo dessa zona de conforto. Sem uma visão em torno da efetividade do direito de greve, basta ao empregador se recusar a atender as reivindicações dos trabalhadores e a negociar para que todo o peso do momento recaia sobre os trabalhadores em greve, sendo que ainda conta, primeiro, com os “fura-greves”, a quem, conforme se costuma dizer, há o direito de ir e vir para adentrar no ambiente de trabalho e continuar trabalhando normalmente e, segundo, com a força policial, que se coloca em favor de garantir esse pretenso direito e também o suposto direito do empregador de continuar em franca atividade. Não se esqueça que aos empregadores ainda tem sido conferida a possibilidade de minar os efeitos da greve mediante a utilização, cada vez mais ampla, da terceirização, sendo oportuno destacar que é exatamente com esse propósito que se apresenta a reivindicação patronal pela aprovação do PL 4. 330/04.
Nesse contexto totalmente desviado daquilo que seria o ideal, qual seja, de um direito sendo utilizado para garantir a greve, os trabalhadores em greve acabam experimentando, pelo exercício da greve, um momento de enormes sacrifícios pessoais e de extrema insegurança jurídica.
Com efeito, diante de tantas adversidades, ao tentarem levar adiante o movimento de greve, com discursos inflamados e ações de piquetes, necessárias para impedir o cometimento da ilegalidade dos fura-greves, os trabalhadores em greve se veem obrigados a um enfrentamento com outros colegas de trabalho e não raro com a Polícia Militar e é exatamente neste instante que se completa a inversão de valores, pois quando os trabalhadores de fato estão sendo coibidos de exercer o direito de greve e buscam se defender passam a ser tomados por agressores, como se fossem eles os agressores da ordem jurídica.
Então, por atos praticados na dinâmica de uma luta, que vai ao ponto do enfrentamento em razão das estratégias silenciosas do empregador de repressão ao movimento, os trabalhadores em greve são punidos por meio de uma compreensão invertida da ordem jurídica e pela aplicação de normas que se direcionam a realidades estáticas e não ao momento de efervescência do conflito, o que representa, em concreto, negar a própria essência do direito de greve, que deve ser entendido como o direito de expressão do conflito entre o capital e o trabalho para viabilizar uma forma democrática de reconstrução do conjunto normativo que estabelece obrigações ao capital pelo permissivo da exploração do trabalho.
Esse pressuposto de análise, que é necessário para melhor compreender os atos praticados pelos trabalhadores na dinâmica de uma greve, não pode ser afastado nem mesmo diante de uma decisão judicial determinando o fim da greve, até porque na essência as decisões judiciais que buscam cessar a greve sem eliminar o conflito ferem a lógica do comportamento humano e própria essência do direito de greve, ainda mais quando tais decisões são dadas liminarmente sem considerar as peculiaridades próprias do serviço e da origem do conflito.
Sem a redução do elemento momentaneamente potencializador do conflito, sem avaliação da responsabilidade do empregador em não negociar, em desrespeitar os direitos dos trabalhadores, em tentar manter-se em funcionamento durante a greve com utilização de terceirizados e incentivos aos fura-greves, qualquer decisão judicial que apenas culpa os trabalhadores pelo conflito e pelos eventuais prejuízos à população acaba constituindo uma nova agressão ao direito de greve e tende a ser inserida na própria dinâmica do conflito, que é a de uma luta social para avanço da ordem jurídica, repita-se, e se verá, por isso mesmo, sob o risco de sofrer abalo em sua autoridade.
Claro que tudo isso tem muito mais valor no plano teórico das normas jurídicas compreendidas e aplicadas com a racionalidade do Direito Social, porque, em concreto, o direito de greve é sistematicamente desrespeitado pelos empregadores e estes têm sido auxiliados nesta atitude pelas instituições cuja função seria a de garantir o direito de greve, sempre sob o argumento falseado de que estão privilegiando outros valores, como o direito de ir e vir, o direito individual de trabalhar, o direito de manter a atividade produtiva e o direito à prestação de serviços públicos. Mas foi exatamente para a se contrapor a esses direitos que se conferiu o direito de greve aos trabalhadores, entendidos enquanto classe e não como individualidades!
Aliás, esses direitos têm sido privilegiados até o ponto extremo não apenas de impedir que a greve exista enquanto expressão do conflito, com todas as dinâmicas de uma luta, mas também de punir todos os trabalhadores que, compreendendo a ilicitude da repressão, resolvem defender, com dignidade e necessária coragem, os seus direitos."
Claro, pode-se dizer que no caso em questão a atitude dos trabalhadores não esteve amparada pelo direito de greve, vez que esta não foi deflagrada em conformidade com o que dispõe a Lei n. 7.783/89. No entanto, em primeiro lugar, a lei em questão é inconstitucional, na medida em que cria trâmite burocrático não previsto na Constituição, que confere aos trabalhadores também o procedimento de escolha da oportunidade da greve e os interesses que por meio dela pretendem defender. Em segundo lugar, a Constituição diz, expressamente, que a greve é um direito dos trabalhadores e não do ente, com personalidade jurídica própria, que é o sindicato. E, por fim, nem é possível confundir greve com ato de defesa de direitos fundamentais, o que se identifica, juridicamente, como ato de resistência.
Ora, quando se interrompe o trabalho para garantir a integridade física e moral ameaçada pela própria condição de trabalho não se está falando, propriamente, de greve e sim de ato de resistência, que, nem em tese, portanto, depende do atendimento dos requisitos da Lei n. 7.783/89, mesmo em atividades consideradas essenciais, porque a condição humana está acima de qualquer outro valor.
Seguindo a linha de avaliação sugerida pelo representante do Ministério Público do Trabalho, o que seria efetivamente “criminoso”? Parar a circulação de ônibus em defesa da segurança ou exigir que o empregado continue o serviço sem garantias de segurança? Paralisar o serviço ou se ver obrigado a prosseguir trabalhando sem o recebimento de salários ou outros direitos como horas extras etc. ou mesmo sem auferir o reajuste anual para recomposição do poder de compra do salário?
O fato de apenas alguns trabalhadores se insurgirem contra a situação não exclui a incidência do instituto da resistência, que não é, vale repetir, um direito que, para ser exercido, dependa de deliberação coletiva. De fato, uns possuem mais “coragem”, digamos assim, de resistir e outros nem tanto e aos que o fazem o direito não pode punir, sob pena de eliminar, em concreto, o sentimento de autodefesa dos trabalhadores, que é a essência da dignidade humana. Bastante esclarecedora, aliás, a explicação de Márcio Túlio Viana, no sentido de que o oposto a uma garantia concreta ao direito de resistência é a submissão, que é sinônimo de dignidade perdida[2].
Se havia razões suficientes para o ato de resistência, se ele foi proporcional à ameaça etc. tudo isso é tema a ser visto no estudo do caso concreto, cujos elementos não possuo, mas que, de todo modo, não seriam, por si, a priori, motivadores de uma justa causa, pois as atitudes de resistência não visam a prejudicar o empregador ou a quebrar o vínculo de boa-fé, aliás, muito pelo contrário, já que tendendo a melhorar as condições de trabalho, favorecem, neste aspecto, tanto ao trabalhador quanto ao empregador. Os empregados que se preocupam e que lutam por um ambiente de trabalho mais seguro e menos insalubre importam-se com suas vidas e com seus empregos, estando, por conseguinte, na direção oposta da justa causa.
Além disso, se a justa causa deve ser embasada em ato grave exaustivamente provado e integrado a uma análise contextual, há uma presunção jurídica em favor do trabalhador e da preservação do emprego, ainda mais em situações que potencialmente a aplicação da justa causa possa ser vislumbrada como discriminação, ou, pior, como represália diante de uma reivindicação.
A respeito da proteção contra discriminação, o Tribunal Superior do Trabalho tem se posicionado nos termos da seguinte Ementa:
“DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. REINTEGRAÇÃO. 4.1 - O entendimento desta Corte superior é no sentido de que ônus da prova da dispensa não discriminatória cumpre ao empregador. Isso porque o direito de rescisão unilateral do contrato de trabalho, mediante iniciativa do empregador, como expressão de seu direito potestativo, não é ilimitado, encontrando fronteira em nosso ordenamento jurídico, notadamente na Constituição Federal, que, além de ter erigido como fundamento de nossa Nação a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1.º, III e IV), repele todo tipo de discriminação (art. 3, IV) e reconhece como direito do trabalhador a proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária (art. 7.º, I). 4.2 - Esta Corte, inclusive, sinaliza que, quando caracterizada a dispensa discriminatória, ainda que presumida, o trabalhador tem direito à reintegração, mesmo não havendo legislação que garanta a estabilidade no emprego, consoante a diretriz da Súmula 443 do TST e de precedente jurisprudencial. 4.3 - No presente caso, emerge dos autos a presunção de que a dispensa do reclamante, portador de glaucoma congênito e em vias de realizar cirurgia, por iniciativa do empregador, foi discriminatória e arbitrária, até porque não houve nenhuma prova de que ela ocorreu por motivo diverso, constituindo, portanto, afronta aos princípios gerais do direito, especialmente os previstos nos arts. 1.º, III, 3.º, IV, 7.º, I, e 170 da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido. PROCESSO Nº TST-RR-1996700-79.2006.5.09.0011, 7ª. Turma, Ministra Relatora, Delaíde Miranda Arantes).”
Portanto, o fato e a forma como foi analisado pelo representante do Ministério Público do Trabalho conferem a oportunidade de um rico debate para o necessário aprimoramento da avaliação jurídica dos atos de trabalhadores em luta, primeiro, porque depois de junho de 2013 toda a sociedade aprendeu que tanto pode quanto deve mobilizar-se para a defesa e a conquista de direitos e esse direito de lutar, por óbvio, não pode ser negado à classe trabalhadora, e, segundo, porque, até agora, o direito parece estar servindo apenas como um aparato para os atos antidemocráticos e de expressão de poder do empregador que se destinam, unicamente, a minar os direitos de greve e de resistência dos trabalhadores.
São Paulo, 29 de agosto de 2015.
Imagem: http://www.contraprivatizacao.com.br/2014_05_01_archive.html
(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[1].http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/O-massacre-do-Rio-de-Janeiro-contra-os-garis/40/33400, acesso em 29/08/15.
[2]. VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador. São Paulo: LTr, 1996, p. 79.