Em editorial publicado no dia 28 de janeiro, o jornal O Estado de São Paulo, Estadão, sem nenhum compromisso com a realidade ou de demonstrar um mínimo de respeito às instituições democráticas, chama o Ministério Público do Trabalho de “ideológico” por ter se manifestado contra a reforma trabalhista pretendida pelo governo federal, inquinando-a de inconstitucional.
A manifestação do Ministério Público do Trabalho foi juridicamente embasada na defesa da Constituição Federal, apoiando-se, ainda, no teor de Tratados internacionais de Direitos Humanos. Só que o Estadão sugere que a defesa da Constituição não seria uma função institucional do Ministério Público do Trabalho, como se essa não fosse uma função de todo e qualquer cidadão brasileiro. É que para o referido jornal, talvez raciocinando na lógica de que os fins (nem sempre revelados) justificam os meios, a Constituição Federal é um mero detalhe que não deve ser levado em consideração quando se tratar de atender aos interesses do setor econômico. E como nessa lógica deixa de ser necessário discutir os termos da Constituição, basta dizer, então, que quem faz menção à existência da Constituição é “ideológico”, fazendo supor que quem despreza a Constituição é “moderno” ou “antenado” com os “novos tempos”, quando se trata, em verdade, de uma atitude transgressora e ditatorial.
Desinformado e desinformando, o Estadão diz que a visão do Ministério Público do Trabalho é “peculiar”, quando, de fato, reflete a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência trabalhistas, como o próprio jornal, diligente na defesa dos interesses do capital, por diversas já reclamou. Não é de hoje, aliás, que o Estadão combate os direitos dos trabalhadores e a Justiça do Trabalho[i]. Conforme acentuam Alberto Aggio, Agnaldo Barbosa e Hercídia Coelho, o jornal, desde quando se identificou como “órgão de imprensa que foi inquebrantável bastião dos liberais paulistas por várias décadas e ferrenho crítico de Getúlio Vargas”[ii], tem se manifestado abertamente contra os direitos dos trabalhadores e a favor dos patrões.
No editorial do último dia 28, sem qualquer embasamento teórico ou fático, sustenta-se que a resistência à derrocada de direitos trabalhistas “aprisiona o ordenamento jurídico a uma determinada época, impedindo que o Direito cumpra sua função de regular adequadamente as relações sociais no tempo presente”.
A qual época se refere, afinal? Ora, o ordenamento jurídico trabalhista está, todo ele, fincado na Constituição de 1988, que não deixa dúvida quanto ao propósito da legislação trabalhista de buscar a melhoria da condição social dos trabalhadores, estabelecendo, inclusive, os parâmetros jurídicos para isso: valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV); função social da propriedade (art. 5º, XXIII); direitos trabalhistas como direitos fundamentais (arts. 7º, 8º e 9º); atrelamento da economia aos ditames da justiça social (art. 170).
Além disso, o que seria regular “adequadamente no tempo presente”? A afirmação é tão desprovida de suporte fático e teórico que fica difícil até estabelecer um diálogo com algum sentido racional.
Segundo o editorial: “Trata-se de um equívoco partir do pressuposto de que todo trabalhador é vítima indefesa do capital e, portanto, seus direitos necessitariam de uma forte intervenção do Estado. Tal raciocínio – amplamente difundido na Justiça do Trabalho – não é jurídico.”
Sobre isso, primeiro, não se pode deixar de destacar que é realmente muito esdrúxulo ver um jornal querendo ensinar Direito do Trabalho para o Ministério Público do Trabalho. De fato, o Estadão perdeu uma boa oportunidade para deixar de demonstrar todo o seu desconhecimento, que põe em dúvida a credibilidade das demais opiniões que expressa ou das próprias notícias que veicula.
O Direito do Trabalho, no mundo inteiro (onde foi institucionalizado), é baseado no princípio de que o trabalho humano não é mera mercadoria de comércio, conforme consignado no Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra mundial. Este Tratado, que traz a Constituição da OIT – Organização Internacional do Trabalho, também considerou que foram as contingências sociais e as más condições de trabalho que puseram em risco a paz mundial. Houve, assim, o reconhecimento de que a livre concorrência e a não intervenção do Estado nas relações de trabalho geraram – e sempre vão gerar – exploração ilimitada dos trabalhadores, dado que os trabalhadores, que não detêm os meios de produção e dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviver, mesmo atuando coletivamente, não têm como impor limites ao capital, sendo que essa situação de submissão se reforça em países de capitalismo dependente.
A exploração exacerbada, sem limites, da força de trabalho, que impede, inclusive, uma distribuição mínima da riqueza produzida, deixa de ser um problema apenas para os trabalhadores, constituindo um fator de desajuste fatal para o próprio modelo capitalista.
Desse modo, os direitos sociais, e, em especial, os direitos trabalhistas, não protegem os “tadinhos” dos trabalhadores. Tentam, isto sim, conferir alguma viabilidade mínima para o capitalismo. Tudo isso é história!
Então, o que o Estadão propõe é um revisionismo histórico que, se levado a fundo, na realidade brasileira, faz parecer que o fim da escravidão foi o que fez desandar a economia nacional. O que defende, fora de qualquer projeto, é apenas a instauração da barbárie.
Lendo o editorial, a gente tem a impressão de que o jornal não está no mesmo mundo em que mais de três milhões de reclamações trabalhistas chegaram, em um único ano, à Justiça do Trabalho[iii], sendo que, ao contrário do que se tenta retoricamente construir, o que essas reclamações refletem é, precisamente, o elevadíssimo grau de desrespeito aos direitos dos trabalhadores na sociedade brasileira, a qual ainda se vê impulsionada, infelizmente, por sentimentos de que salário mínimo para a empregada doméstica é um furto contra o “patrão”; que acha que é possível desrespeitar a Constituição Federal e ainda ser detentor de “segurança jurídica”, sendo certo que são exatamente editoriais como este em comento que retroalimentam essas visões deturpadas de mundo.
Olhando, exclusivamente, para as relações de trabalho no Brasil, quem, por exemplo, já não ouviu falar em: salário “por fora”; cartões de ponto fraudados; horas extras não pagas; trabalhador transformado em PJ; ausência de recolhimentos de FGTS; supressão do intervalo para refeição e descanso; trabalho sem registro etc?
Concretamente, o número das reclamações que chegam à Justiça do Trabalho é infinitamente menor do que as práticas, quase sempre reiteradas, de desrespeito aos direitos trabalhistas.
Mas as ofensas à inteligência alheia promovidas pelo editorial do Estadão não parecem ser suficientes e o jornal desemboca para a ofensa explícita, acusando a Justiça do Trabalho de estimular a “indústria de reclamações trabalhistas”, como se juízes e advogados trabalhistas atuassem mancomunados para prejudicar os empregadores. Caberia ao jornal esclarecer o que seria “indústria da reclamação trabalhista” em um país cuja realidade das relações de trabalho é a da extrema precariedade de direitos, o que, inclusive, favorece ao processo de acumulação de riquezas que se dá no Brasil da forma mais intensa e perversa do que na maioria das regiões do mundo[iv]. Uma realidade em que sobressaem elevados e indecorosos índices de: exploração dos trabalhadores em condições análogas à de escravo[v]; exploração do trabalho infantil[vi], acidentes do trabalho[vii], extensas jornadas de trabalho[viii] (muitas vezes praticadas inclusive sem remuneração), sobretudo no trabalho terceirizado de limpeza, conservação e vigilância, e sem falar, é claro, da precariedade jurídica do trabalho doméstico.
Dentro desse contexto de desconsideração generalizada dos direitos trabalhistas, constitucionalmente assegurados, as reclamações não precisam ser inventadas e não cabe, de forma alguma, tomar os trabalhadores e a Justiça do Trabalho como vilões.
O que o editorial tenta fazer não é apenas uma inversão de valores, é uma apologia à barbárie, ao trabalho em condições análogas à de escravo, à supressão da cidadania e ao abandono do Estado Democrático de Direito, pretendendo, ainda, colocar uma mordaça em todos que resistam a esse estado de coisas.
Para o Estadão, os problemas dos desajustes do modelo de produção estão simplesmente fora de qualquer análise, pois, na avaliação do jornal, que se arvora no poder de julgar, os culpados de tudo são os próprios trabalhadores, que exigem seus direitos, e a Justiça do Trabalho, que insiste em fazer aplicar esses direitos.
E o pior é que a Justiça do Trabalho sequer merece esse autêntico elogio feito pelo Estadão, de ser uma instituição que atua, com toda a potencialidade jurídica, em defesa da efetividade das normas constitucionais trabalhistas, eis que há muito (e, em certa medida, também o Ministério Público do Trabalho) vem cedendo aos reclamos do capital, no sentido de conferir flexibilização às leis trabalhistas, sob a suposição de que isto aumentaria a competitividade das empresas e o nível do emprego, mas que tem gerado, de fato, maior sofrimento aos trabalhadores e pioras na economia.
Assim, de certo modo, bem que se poderia atender a demanda do Estadão, de que se deve alterar o modo como a legislação trabalhista tem sido aplicada, para que se pudesse, enfim, superar a jurisprudência trabalhista que, para proteger de forma ideológica e não jurídica o capital, tem insistido em: “a) validar a terceirização na atividade-meio, com fixação de uma responsabilidade apenas subsidiária da tomadora dos serviços; b) não reconhecer o princípio da sucumbência no processo do trabalho; c) acolher o regime de 12x36; d) declarar a constitucionalidade do banco de horas, fazendo letra morta da norma constitucional que estabeleceu o limite de 44 horas semanais; e) conceber a regularidade das horas extras ordinariamente prestadas e que ultrapassam, inclusive, o limite de duas horas ao dia; f) permitir a terceirização no setor público; g) acatar a tese da responsabilidade subjetiva pelos acidentes do trabalho, acolhendo, tantas vezes, o argumento da culpa exclusiva da vítima; h) afastar a configuração do acidente do trabalho com base no pressuposto da necessidade da prova do nexo causal, não reconhecendo as presunções do Nexo Técnico Epidemiológico e fazendo sobressair os caracteres degenerativos; i) não considerar acumuláveis adicionais de insalubridade mesmo quando presentes distintos agentes nocivos à saúde no ambiente do trabalho; j) adotar o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade apesar da proibição constitucional e da referência expressa da Constituição a ‘adicional de remuneração’; k) não deferir a acumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade; l) fixar valores quase sempre muito baixos para as indenizações por acidentes do trabalho e por danos morais e materiais, irrisórios se comparados, por exemplo, às reparações que se vêm concedendo por perdas de bagagens por companhias aéreas; m) homologar acordos sem respeito ao caráter imperativo da legislação do trabalho, legitimando autênticas renúncias a direitos; n) consignar nos acordos cláusula com quitação do extinto contrato de trabalho, promovendo vedação do acesso à justiça; o) pronunciar, sistematicamente, a prescrição quinquenal com base em interpretação extremamente restritiva da norma constitucional; p) rejeitar a eficácia da norma constitucional que garante aos trabalhadores a relação de emprego protegida contra a dispensa arbitrária; q) negar a teoria da subordinação estrutural e reticular para efeito do reconhecimento do vínculo empregatício; r) recusar a aplicação dos preceitos legais pertinentes ao dano social, cuja função é punir de forma adequada a prática das agressões reincidentes e deliberadas da legislação trabalhistas, eliminando a vantagem econômica do agressor; s) não garantir às trabalhadoras domésticas a integralidade de direitos; t) impor limitações inconstitucionais e ilegais ao exercício do direito de greve etc.”[ix]
O fato é que ainda estamos muito distantes do tempo em que a crítica do Estadão pudesse ter algum sentido ao menos de correspondência com a realidade.
Assim, por falta de uma interlocução minimamente séria resta interditado o debate, ficando apenas a certeza em torno da soberba que assola os detentores de algum tipo de domínio econômico e que os faz acreditar que podem tudo, e isso, de certo modo, acaba se constituindo a prova de que a imposição jurídica de limites ao poder do capital é mesmo necessária.
São Paulo, 30 de janeiro de 2017.
[i]. Vide, a propósito, o texto: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/aos-agressores-dos-direitos-trabalhistas-ha-juizas-e-juizes-do-trabalho-no-brasil
[ii]. AGGIO, Alberto; BARBOSA, Agnaldo; COELHO, Hercídia. Política e sociedade no Brasil (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002, pp. 28-29.
[iii]. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,em-2016-brasil-ganha-3-milhoes-de-acoes-trabalhistas,10000096536
[iv]. http://oglobo.globo.com/economia/brasil-tem-segunda-pior-distribuicao-de-renda-em-ranking-da-ocde-7887116, acesso em 19/06/16.
[v]. http://reporterbrasil.org.br/2016/02/nova-lista-de-transparencia-traz-340-nomes-flagrados-por-trabalho-escravo/, acesso em 18/06/16.
[vi]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/11/em-2014-havia-554-mil-criancas-de-5-13-anos-trabalhando-aponta-ibge.html, acesso em 18/06/16.
[vii]. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-04/brasil-e-quarto-do-mundo-em-acidentes-de-trabalho-alertam-juizes, acesso em 18/06/16.
[viii]. Brasileiro é campeão em horas extras: http://www.e-konomista.com.br/n/horas-extras-no-trabalho/, acesso em 18/06/16.
[ix]. http://www.jorgesoutomaior.com/blog/aos-agressores-dos-direitos-trabalhistas-ha-juizas-e-juizes-do-trabalho-no-brasil