Na ordem jurídica nacional não se têm os institutos da condenação perpétua e da consequente punição para o restante da vida. Cumprida a pena, na fixação jurídica estabelecida, embora, nos primeiros cinco anos (art. 64 do CO), haja a perda da condição de réu primário, que é uma atenuante na fixação das penas, o condenado recupera todos os seus direitos e, sobretudo, o de se reintegrar à sociedade.
Não é este, no entanto, o caso em questão, pois, ao que consta, embora condenado, Cuca não cumpriu a pena.
Bem verdade que Cuca insiste em dizer que é inocente e também que a condenação adveio porque não se defendeu no processo.
Há dois grandes problemas nestas formulações.
Fato é que a condenação foi validamente proferida e até hoje não levada a efeito concreto, do ponto de vista da pena fixada.
Além disso, o próprio fato ensejador da condenação não se apaga e, dada a sua gravidade, mesmo que a pena houvesse sido cumprida, a ninguém seria dado simplesmente esquecer o ocorrido.
Neste aspecto, adentra-se o segundo argumento lançado: o da inocência.
O que se tem de forma objetiva a respeito (já que os dados do processo estão em sigilo, por pedido da vítima) são os termos da fala de Cuca, na entrevista concedida na última sexta-feira, dia 21.
E o que se extrai de sua fala é uma autêntica confissão.
Com efeito, tentando afastar sua participação no estupro, Cuca disse que estava em um quarto em “L” e que de onde estava não dava para ver o que estava acontecendo (“se é que estava acontecendo”, acrescenta ele de forma evasiva) no outro canto do quarto.
Assim, mesmo se considerado que os fatos ocorreram do modo manifestado em sua versão, o resultado não seria a declaração de inocência, muito ao contrário. No mínimo, Cuca teria sido omisso diante da prática de um crime, o que é também um ato criminoso.
Mas o pior é que em sua fala, apresentada décadas depois do ocorrido, Cuca não demonstra qualquer arrependimento ou mesmo algum constrangimento. E vai além, buscando fazer crer que um estupro é apenas mais um fato normal na vida das pessoas, com o qual se deve conviver com naturalidade, mesmo que esteja acontecendo no mesmo recinto onde se está descansando...
Em suma, Cuca considera que não precisa pedir desculpas a ninguém pelo fato de – na sua versão – não ter feito nada para impedir que um estupro se consumasse no quarto onde ele tranquilamente repousava.
E o que disseram os representantes do Corinthians presentes à entrevista sobre isso? Absolutamente nada, agindo, pois, como se estivesse tudo dentro da maior normalidade, naquele instante e posteriormente.
O Corinthians, por conta da conduta assumida, passa a integrar o rol dos amenizadores dessa trágica história, do estupro coletivo de uma menina de 13 anos de idade, de modo a favorecer a persistência de uma situação em que um dos acusados, que foi processualmente condenado e que ainda não cumpriu a pena, se mantém por aí, sempre bem recebido no meio futebolístico, reduzindo e até naturalizando a gravidade da violência havida e do crime de estupro propriamente dito.
Essa lista, aliás, é muito longa, pois o persistente silêncio ou a absolvição do acusado por meio da culpabilização da vítima tem adquirido ares de conivência com relação a um crime que, segundo o IPEA, atinge 822 mil mulheres a cada ano no Brasil (cerca de dois estupros por minuto)(1), sendo a maioria mulheres negras(2). No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, este percentual vai a 57% de mulheres negras(3).
Todos esses aspectos nos obrigam a reconhecer que só mesmo em uma estrutura social marcadamente machista e racista é que este silêncio comprometedor se sustente. E neste aspecto vale registrar que Cuca foi contratado para substituir Fernando Lázaro, que, em 24 jogos como treinador, conduziu o time a 14 vitórias, incluindo uma vitória no 1o jogo do brasileirão, além de 6 empates e apenas 4 derrotas, com aproveitamento de 67%. Só que Lázaro, dentro da concepção estruturalmente racista, tinha um “defeito”: ser negro. E isso, como denunciado por “Racionais MCs”, significa ser "aquele loco que não pode errar" no mercado de trabalho, tanto que, até hoje, pessoas negras não tiveram efetivo e consolidado espaço como treinadores no futebol brasileiro.
Não se pode deixar de destacar, também, que Cuca é um homem branco e a impunidade é bem maior entre os homens brancos, que tendem a sair ilesos das acusações de que são alvos, sobretudo, por conta da ampla defesa social que lhes é dirigida. Nos termos desse pacto implícito de preservação de privilégios, os fatos que remetem a crimes cometidos por pessoas brancas ganham a qualificação de meros erros. Não é à toa, portanto, que, no Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em junho de 2020, se destacou que no próprio âmbito da atuação judicial pratica-se um “racismo velado”. Por meio de dados trazidos em pesquisa, revelou-se que, embora a quantidade de maconha apreendida com pessoas brancas seja, em média, maior do que aquela encontrada com pessoas negras, estas, as pessoas negras, são as mais condenadas (71,35% contra 64,36% dos brancos).(4)
Concretamente, é inconcebível que tudo isto esteja acontecendo com ares de normalidade, ainda mais por meio da estratégia de perverter a realidade e, assim, tentar transformar em “perseguidores” ou “intolerantes” aqueles que não se calam.
De todo modo, ao menos neste caso específico, ainda resta a esperança de que a Fiel (em seu sentido amplo) se mantenha fiel aos seus princípios de defesa dos Direitos Humanos e, sobretudo, do respeito “às minas” e reaja, no mínimo, para deixar evidenciado que estupradores ou aqueles que consideram que o estupro é apenas mais um fato que se assiste ou se escuta com a naturalidade de quem ouve uma música ou assiste a um jogo de futebol não são bem-vindos. E também para expressar que a adesão ao clube do “coração” não vai ao ponto do silêncio conivente com a prática ou a naturalização de um crime.
São Paulo, 23 de abril de 2023.
(1) https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13541-brasil-tem-cerca-de-822-mil-casos-de-estupro-a-cada-ano-dois-por-minuto
(2) https://www.terra.com.br/nos/brasil-tem-sete-estupros-por-hora-mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas,a945775b6bcf75c5a8d4a08bd4aa1e9dcx44vdyq.html
(3) https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/rj-57-das-vitimas-de-estupro-sao-mulheres-negras/
(4) https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/