(Um artigo recuperado para homenagear o ator Rutger Hauer)
1.INTRODUÇÃO: BLADE RUNNER(FILME DE 1982 BASEADO EM OBRA LITERÁRIA CLÁSSICA) ANTECIPA O CENÁRIO DE DESTRUIÇÃO LABORAL, AO PROJETAR A LOS ANGELES DE 2019
Sim, finalmente chegamos a 2019, o ano projetado na ficção científica “Blade Runner”(filme de 1982) para expor o cenário da desolação humana laboral, de maior concentração de riquezas e da destruição do meio ambiente vislumbrado naquela Los Angeles cosmopolitada pela miséria reinante em suas ruas apinhadas de migrantes salvando-se como podem.
1982 e 2019, definitivamente, anos marcantes, no cinema, na história e também nos dramas da humanidade, esta espécie perseguida ao longo dos séculos por acentuadas injustiças sociais.
Blade Runner é de uma riqueza impressionante, a ponto de não ser fácil decifrá-lo rapidamente ou precipitadamente como alguns cinéfilos o interpretam apenas sob o viés da cibernética revolucionária apta a criar robôs incrivelmente semelhantes aos humanos.
Por isso mesmo, não raro o filme consegue agradar mentes situadas em horizontes políticos opostos ou oceanicamente distantes na geografia das correntes de pensamento e de ações para transformar o mundo, preservá-lo ou torná-lo cada dia mais segregacionista.
É possível encontrar pessoas de esquerda e direita reverenciando “Blade Runner”, como ocorre, por exemplo, com o gesto de aficionados “malucos” em algumas cidades europeias, notadamente na Alemanha, os quais se reúnem nos finais de semana para a reprise do filme de forma rotineira.
Enfim, o espectador escolhe o viés objeto de sua atenção e nele tem a convicção de encontrar as respostas pretendidas, sejam elas críticas, conformistas ou ilusionistas.
Resgata-se aqui parte de ensaio escrito outrora sobre as mensagens e os encantos de “Blade Runner“, agora o fazendo em homenagem ao fantástico ator holandês Rutger Hauer, que interpretou no referido filme o personagem Roy. Era ele, na película, o aparente vilão. Foi o sujeito, contudo, que emprestou brilho inigualável a essa densa obra de arte do século XX, com todo respeito à atuação de Harrison Ford, visto inadvertidamente na qualidade de protagonista, ao interpretar o caçador de androides, na pele do “herói” burocrático Rick Deckard.
Em filmes do gênero, registre-se, o protagonista não é necessariamente o ator que dispõe do maior tempo de participação na tela, senão aquele que faz por merecer a partir do seu desempenho e do enredo, a exemplo de Rutger Hauer, responsável não apenas por desempenho artístico notável, como também, se soube depois, pela criação de diversas falas de seu personagem Roy.
Roy, inegavelmente, é o líder dos oprimidos da era cibernética, ao se rebelar contra o despotismo do processo produtivo flexível, terceirizado e precário, além de não aceitar a descartabilidade da mão de obra, não se conformar, portanto, com o destino reservado a todos aqueles que trabalham anos a fio e depois são descartados como produtos ou mercadoria, na figura do replicante tão humano quanto qualquer outro humano, em liderança, sentimentos, gestos e revoltas.
E não é que Roy, corrijo, Rutger Hauer, tal como o replicante que não se conformava com o seu destino e o de seus semelhantes, o mais inteligente, articulado, valente e belo dos “mais humanos” do que os humanos, decidiu morrer, na vida real, também no emblemático 2019, agora no mês de julho passado, como uma espécie de profecia quase macabra ou de mistura de ficção com a realidade.
“Blade Runner“ sempre foi mais realidade do que ficção científica, até na morte do seu mais destacado personagem.
Para Homenagear Rutger Hauer, que faleceu em julho de 2019, tal como o seu personagem Roy em “Blade Runner”,além da republicação de parte de ensaio anterior, no qual há desmedido esforço para demonstrar que a película mudou o cinema para sempre, ao antecipar vários aspectos das relações essencialmente contraditórias da denominada “pós-modernidade”, nada mais significativo do que também fazê-lo relembrando as últimas palavras de Roy, no momento de sua despedida: “Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Oreon. Vi raios-C resplandecendo no escuro perto do Portão de Tanhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Descanse em paz, Roy Batty, digo, Rutger Hauer.
2.TRABALHO E CIBERNÉTICA: UM ENCONTRO MARCADO POR CONFLITOS
Nas últimas quatro décadas o tempo parece ter andado em uma velocidade impressionantemente fugaz, como se o relógio do mundo tivesse agora abolido frações menores de medição dos espaços entre uma hora e outra ou acionado pelo método digital, por enquanto, eficaz rotação permanentemente acelerada para ultrapassar e eliminar o que fica obsoleto da noite para o dia, o que se torna velho antes de atingir a puberdade, o que se revela incompatível com o ritmo da modernidade avançada. Essa sensação muito próxima da realidade concreta, do cotidiano das pessoas, decorre, por um lado, das mudanças sociais, políticas e culturais vistas a partir dos anos 1960 e, por outro, da revolução cibernética responsável pela introdução de outros paradigmas em todas as áreas do conhecimento e comportamento humanos. Segundo Menelick de Carvalho Netto, na “sociedade moderna, complexa, o tempo é sempre e cada vez mais raro, mais curto, posto que apropriável, qualificável e vendável, redutível, portanto, a cálculos quantitativos na composição de projetos, investimentos e custos”.[i]
Inegavelmente, há uma arrasadora revolução microeletrônica em curso, para o bem e para o mal, para ser utilizada de forma altamente proveitosa ou para servir como objeto de envolvente alienação travestida de modernidade democrática. Muitas vezes não conseguimos nos imaginar sem os recursos da cibernética, hoje utilizados com tanta frequência e naturalidade. O aparelho telefônico celular multifuncional e os minúsculos computadores não apenas integram a rotina diária dos fanáticos internautas, como também pautam várias de suas ações, ao deixá-los conectados ao mundo virtual o tempo todo, quando não os submetem aos seus caprichos menos nobres consistentes na hipervalorização do fútil bastante estimulado no mundo em rede.
Para as relações de trabalho fabris, por exemplo, desde o ingresso da eletricidade, do petróleo, da química pesada e da mecânica de previsão como fundamentos da Segunda Revolução Industrial (1870-1890), não se via nada tão extraordinariamente transformador como o uso largo do computador e do potencial da engenharia robótica no processo produtivo.
Com a eletrônica ainda em puro estado metamorfósico, anuncia-se que a automação empresarial logo dispensará o trabalho humano no âmbito da nova logística do capital ou, no mínimo, reduzirá significativamente a sua relevância, de modo que o Direito do Trabalho, por via de consequência, também desaparecerá do cenário jurídico.
Na presença deste quadro radicalmente alterado nas últimas décadas, o objeto deste ensaio centra o seu olhar crítico para o mundo do trabalho estruturado nos avanços cibernéticos aparentemente inesgotáveis e no exponencial crescimento das formas de fragmentação do processo produtivo em rede, bem como as suas consequências para o Direito do Trabalho e para a vida em sociedade.
Persegue-se, assim, avaliar de maneira crítica a influência dos sofisticados incrementos da microeletrônica, em perfeita sintonia com a repartição da cadeia produtiva, sobre as novas relações de produção, bem como os seus propósitos e resultados mais concretos para a consolidação ou enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.
Blade Runner[ii] (1982), filme dirigido por Ridley Scott, aqui escolhido para tensionar a relação entre extraordinário fenômeno tecnológico e valor humano fundamental, consegue realizar de forma magistral o encontro da cibernética com o trabalho desenvolvido sob a realidade do poder burguês ancorado na engenharia da informação. A referida obra de arte marcada pelo futurismo científico interage com o destino de uma das maiores conquistas civilizatórias do século XX, qual seja, o Direito do Trabalho como marco da sociedade capitalista menos absoluta, mais contida no seu ímpeto liberal em nome da efetividade dos Direitos Humanos e da justiça social.
Daí a pertinência em observar as mensagens emitidas por Blade Runner no início dos anos 1980 a respeito do novo mundo do trabalho, hoje assim visto com meridiana clareza para que, ao final, sejam avaliados criticamente o papel e as alternativas do Direito em tempos fugazes e efêmeros próprios da época da Terceira Revolução Industrial.
3. A REVOLUÇÃO CIBERNÉTICA RETRATADA EM BLADE RUNNER COMO CONFIGURADORA DE UM NOVO MODELO DE RELAÇÕES DE TRABALHO
Em 2019, Los Angeles carregada de ambiguidades da era do espaço-tempo adaptáveis às necessidades do sistema econômico, é o centro dos conglomerados da engenharia genética utilizada para o humano magnata penetrar planetas mais seguros, a exemplo do que ocorre com a atividade desenvolvida pela corporação Tyrrel, assim como também é essencialmente a periferia social reinante em toda a cidade cercada por alguns luxuosos prédios espelhados e iluminados.
A Tyrrel Corporation cuida da criação genética de seres humanos especiais, aptos a manejar tarefas por demais complexas em outro planeta no contributo ao desenvolvimento econômico na terra. Denominados de replicantes, essas cópias humanas mais do que perfeitas são produzidas em pequenas fábricas compartimentadas, altamente especializadas, cada uma delas responsável pela concepção de parte do corpo para além de humano dos sujeitos com imensas obrigações e nenhum direito. Como oferecem riscos aos humanos (criadores e exploradores de seus serviços), por serem supostamente instáveis emocionalmente, agressivos e, diante da notória superioridade física e intelectual, os replicantes da espécie Nexus-6 não podem frequentar a terra, nem devem gozar de qualquer tratamento distinto daquele oferecido aos robôs normais, à exceção do prazo limitado de quatro anos de vida.
Dada a semelhança com os seres humanos, fruto do processo revolucionário da engenharia genética, os replicantes deles herdaram sentimentos como amor, ódio, raiva, solidariedade, compaixão, revolta e união de forças para eliminar, entre outras ofensas, as condições degradantes de trabalho, o fator descartabilidade presente no curto prazo de vida deles e a existência de algozes os quais desfrutam confortavelmente do quadro opressivo objeto de extrema revolta.
Sob a liderança de Roy, personagem de Rutger Hauer, três outros replicantes fogem para provocar uma rebelião em Los Angeles contra os seus criadores, exploradores e projetistas, cujo alvo central é o magnata da engenharia genética Tyrrel (personagem de Joe Turkell), proprietário da corporação Tyrrel. E para enfrentá-los nada melhor do que alguém com extraordinária capacidade física, dotado de profundo conhecimento dos segredos dos replicantes, ostentando este perfil, na trama, o agente policial aposentado Deckard, interpretado por Harrison Ford. Ao que tudo indica, Deckard é um replicante alforriado, domesticado, cooptado para lidar com os perigos que a sua espécie oferece quando penetra espaços não autorizados pelos donos do negócio mais rentável no tempo da fabricação do além do homem não nietzscheano.
Quanto ao mundo laboral emergente, reitere-se, os tensos diálogos entre humanos e “os mais humanos que os humanos” (Nexus-6), os sons impactantes anunciadores de viagens para outras galáxias e as arrebatadoras imagens desta clássica obra de arte em torno da época “pós-moderna”, tudo envolto nos múltiplos papéis da engenharia genética, revelam a submissão obreira aos experimentos de uma vida “pós-humana”, onde prepondera a superespecialização, a fragmentação total da fábrica (trabalho em rede) e a descartabilidade da força de trabalho após o cumprimento de sua tarefa especial. As cenas mais marcantes, sob tal viés, encontram-se em dois decretos de morte, quais sejam, o fim da era fordista de produção concentrada na grande fábrica vertical e o agonizante desaparecimento do líder dos replicantes pela expiração do seu prazo de validade.
Para localizar o seu criador e explorador (Tyrrel), mas especialmente para prolongar o seu tempo de vida, Roy, o mais inteligente e belo dos replicantes, na companhia de outro colega, vai à fábrica totalmente horizontalizada responsável pela concepção exclusiva de olhos. Trata-se de uma subcontratada da Tyrrel Corporation dirigida pelo velho cientista chinês Hannibal Crew (personagem de James Hong), que se refere a Tyrrel como “patrão”. Inquirido por Roy sobre longevidade, Hannibal, tremendo de medo, gaguejando, diz o seguinte: “Só faço olhos. Só Olhos. Só concepção genética. Tú Nexus? Concebi os teus olhos.”. Em estilo provocante, Roy responde-lhe então: “Se ao menos pudesse ver o que vi com os seus olhos”. Na outra cena, após vencer a luta contra Deckard e preservar a vida do agente especializado em identificar e liquidar replicantes, Roy, nos últimos momentos de sua existência, agonizando porque o seu tempo chegou ao fim, descreve, para o adversário incrivelmente perdoado, o que fora sua curta e intensa vida: “Vi certas coisas que a sua gente não acreditaria. Naves ardendo ao Largo de Orion. Vi raios cintilando na escuridão junto ao Porto de Tannhäusci. Todos esses momentos vão se perder no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.
A arte cinematográfica de Blade Runner, sem nenhuma dúvida, nos apresenta a época da engenharia genética utilizada para construir uma força de trabalho diferenciada para tarefas do mesmo gênero, muito além da capacidade humana normal (replicantes), mas com reduzido prazo de validade, descartável, portanto, depois de cumprida a sua grandiosa missão. É também o tempo da radical repartição do processo produtivo (a existência da fábrica de olhos dos replicantes), da fluidez do tempo, da pressa, da precarização das condições de trabalho, do crescimento dos conglomerados econômicos (a fábrica Tyrrel como expressão do potencial da nova indústria e a Coca-Cola nos inúmeros painéis luminosos na cidade Los Angeles), da relevância da imagem e do marketing das empresas, da pobreza reinante, da poluição total, da destruição do meio ambiente, da impressionante arquitetura dos prédios espelhados e luminosos vistos a partir do olhar do piloto da nave espacial e de seu completo fracasso como obra arquitetônica ou mesmo na qualidade de ambiente minimamente confortável para a geração do individualismo exacerbado. Há, efetivamente, duas Los Angeles em 2019,a da beleza da vista aérea e a real, esta última, registre-se, fria, insensível, perigosa, poluída e suja.
Apresentada apenas como obra de ficção científica no início da década de 1980 do século XX, Blade Runner antecipou várias das tendências econômicas, políticas, sociais e culturais hoje presentes na relação entre a cibernética e o modo de produção da acumulação flexível do capital, de onde emerge a relevância do exame crítico, quanto ao papel desta obra de arte, para a defesa ou não dos Direitos Humanos de natureza econômica, social e cultural, com destaque para os direitos do trabalho.
4. CIBERNÉTICA, TRABALHO, DIREITOS HUMANOS E ARTE
Em um mundo cada vez mais instável marcado por tragédias sociais e velozes transformações tecnológicas, sem que umas estejam necessariamente vinculadas às outras, o fator trabalho ainda é o epicentro das disputas travadas na sociedade capitalista, daí decorrendo, evidentemente, múltiplas formas de expropriação de valores humanos fundamentais anunciados ou não pelos catálogos dos acanhados pactos de direitos econômicos, sociais e culturais.
As ideias dominantes, no entanto, colocam em dúvida a própria existência da matriz do trabalho humano como valor ainda fundante da sociedade capitalista ou a sua relevância no denominado mundo “pós-moderno”, segundo apregoado por vários dos defensores da sociedade “pós-trabalho”, teoria essa enfaticamente refutada por pensadores de outra ordem ideológica[iii]. Ademais, propaga-se rapidamente nos mais diversos meios a teoria da inevitabilidade da terceirização, interna e externa, como fenômeno da economia de mercado que se põe independentemente do ordenamento jurídico ou da vontade do trabalhador, independentemente do destino do Direito do Trabalho como ramo integrante dos Direitos Humanos Fundamentais.
Sob tal perspectiva, para superar o campo da retórica jurídica ou política, o conjunto da sociedade responsável pelo funcionamento do Estado Democrático de Direito, no cumprimento de sua missão mais expressiva, deve agir com rasgada intransigência para assegurar o exercício dos direitos humanos, tanto os civis e políticos, quanto os econômicos, sociais e culturais.
Cabe enfatizar que os direitos humanos jamais se submetem, do ponto de vista do efeito limitador, ao rol previsto nos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais. Eles não nascem no momento de sua positivação, mas afirmam-se como produtos culturais resultantes dos intensos processos de luta pela dignidade humana nas mais variadas dimensões. Passam, pois, do campo da retórica do liberalismo da igualdade meramente formal para a verdadeira igualdade material configurada pelo pleno acesso igualitário de todas as pessoas aos bens materiais e imateriais da vida.[iv]
Na expressão de um dos mais influentes filósofos e militantes da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, Joaquin Herrera Flores:
"Os direitos humanos, mais que direitos “propriamente ditos”, são processos, ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários à vida. Como vimos, os direitos humanos não devem confundir-se com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. Uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos humanos. Admitir que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que não sai de seu próprio círculo vicioso. Daí que, para nós, o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade."[v]
Herrera acredita nos direitos humanos fundados sob a égide de processos coletivos de lutas contra o capital globalizante, na atualidade, tudo capaz de agregar pensamento sintomático e ação política concreta configuradores de uma veia emancipatória das práticas sociais construídas para enfrentar a igualdade meramente formal de fração considerável dos institutos jurídicos em vigor mundo afora. Para tanto, não é possível segregar direitos econômicos, sociais e culturais, muito menos lançá-los na parte inferior da insustentável escala hierárquica de valores fundamentais.
Profundamente cético, Costas Douzinas observa a decantada política ocidental de enaltecimento dos direitos humanos universais como mero recurso propagandístico, considerando as próprias práticas perversas do Ocidente e o seu desprezo aos valores culturais de outros povos. [vi]
Os dois autores antes citados estão de acordo quanto à ácida crítica ao modelo de direitos humanos nascidos e manipulados a partir da ação do Estado, cuja consequência mais evidente de tal recurso é a camuflada negação de direitos fundamentais a imensa maioria de explorados e oprimidos pelos grupos dominantes.
No aspecto aqui focalizado, tomando como referência o poder do aparato microeletrônico na materialização de nova realidade entre o capital e o trabalho, como demonstrado de forma exitosa por Blade Runner, resta situar a posição dos direitos humanos, com especial ênfase para os econômicos, sociais e culturais, no mundo cibernético.
A permanente busca pelo lucro gerador do acumulo de riquezas materiais exige do capitalismo contínuas mudanças nas relações de produção, assim agindo o regime da classe burguesa em nome da sua vitalidade e da própria sobrevivência enquanto sistema econômico, como antecipado por Marx e Engels no século XIX. [vii] Nesse sentido, opera-se, desde a década de 1970 do século XX, notória reestruturação do aparato econômico, mediante o compartilhamento ou fragmentação do processo produtivo (terceirização, subcontratação, trabalho em rede, fim dos enormes espaços físicos como área de concentração de trabalhadores e da grande empresa verticalizada) e o surgimento de regimes de trabalho mais flexíveis, além do indispensável uso dos avanços cibernéticos para fundar uma harmonia entre capital e modernidade avançada ou “pós-modernidade”, como querem alguns, capaz de apagar conflitos sociais, descartar excessos e inutilidades existentes na cadeia produtiva e no mundo.
No estudo da lógica transformativa e especulativa do capital, David Harvey sintetiza com precisão o movimento realizado para manter a vitalidade do regime econômico, senão vejamos:
"O capital é um processo, e não uma coisa. É um processo de reprodução da vida social por meio da produção de mercadorias em que todas as pessoas do mundo capitalista avançado estão profundamente implicadas. Suas regras internalizadas de operação são concebidas de maneira a garantir que ele seja um modo dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incansável e incessantemente a sociedade em que está inserido. O processo mascara e feitichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade de trabalho e do desejo humanos, transforma espaços, acelera o ritmo da vida. Ele gera problemas de superacumulação para os quais há apenas um número limitado de soluções possíveis."[viii]
Em nome de antigos dogmas, o capital mercantilizou tudo, privatizou serviços públicos essenciais e continuou dilacerando, agora com maior voracidade, as duas fontes de sua riqueza, quais sejam, a natureza e os seres humanos[ix]. Numa concepção marxista, esta volúpia da burguesia pelo lucro gerador do acúmulo de riquezas materiais não se trata de nenhum instinto perverso dos homens detentores dos meios de produção, senão a verdadeira lógica do capitalismo que exige, por um lado, constante progresso material dos fatores de produção, ainda que sacrificando a natureza e o meio ambiente e, por outro, intensa exploração da mão-de-obra humana.
Richard Sennett afirma que:
"Os líderes empresariais e os jornalistas enfatizam o mercado global e o uso de novas tecnologias como as características distintivas do capitalismo de nossa época. Isso é verdade, sim, mas não vê outra dimensão da mudança: novas maneiras de organizar o tempo, sobretudo o tempo trabalho(...) As empresas também transferiram muitas das tarefas que antes executaram permanentemente em suas instalações por pequenas firmas e indivíduos empregados com contratos de curso prazo. O setor da força de trabalho americana que mais rápido cresce, por exemplo, é o das pessoas que trabalham para agências de emprego temporário(...) O computador foi a chave para substituir as lentas e emperradas comunicações que se fazem nas tradicionais cadeias de comando. O setor da força de trabalho que mais rápido cresce lida com serviços de computação e processamento de dados, a área em que trabalham Jeannette e Rico; o computador é usado em praticamente todos os serviços, de muitas formas, por pessoas de todas as categorias”.[x]
Na leitura de Altamiro Borges:
"Todo esse avanço tecnológico tem enormes reflexos. Do ponto de vista do capital, possibilita um aumento sem precedentes da produtividade e uma brutal redução dos custos operacionais - incluindo aí o corte de empregos, ganhos com a economia de tempo e diminuição de reparos, refugos e estoques.
Além disso, ele permite maior flexibilidade na produção. Com esses novos equipamentos, basta acionar o sistema de controle, baseado no microprocessador, para que o robô ou a máquina-ferramenta com CNC se adapte de imediato às novas funções, redesenhando peças ou produtos. Essa versatilidade possibilita que as empresas automobilísticas já produzam carros com acabamentos específicos e características exclusivas, atendendo à demanda de um mercado cada vez mais elitizado e excludente.
Mas as vantagens não se limitam ao aumento da lucratividade. Através da microeletrônica, a burguesia também consegue tornar mais rígido o controle sobre os trabalhadores. Desde a superação do trabalho artesanal, essa é uma questão decisiva para a sobrevivência do atual sistema. Segundo Benjamin Coriat, "microcomputadores ou terminais de computador instalados em máquinas podem permitir - antecipando informações sobre a velocidade do corte, a freqüência de utilização de cada ferramenta, os tempos perdidos que separam duas operações - o exercício de um controle rigoroso de ritmos, da cadência do trabalho, bem como da freqüência com que as peças são aceitas". Sem a presença física de contramestres ou supervisores e de forma muito mais eficaz, a empresa pode combater o que Taylor chamava de "corpo mole" do trabalhador. A microeletrônica, a serviço do capital, diminui ainda mais a autonomia operária.
Esses são os grandes objetivos da burguesia e é nesse contexto que a automação deve ser analisada, sem qualquer ilusão com a tese da ciência como algo neutro. A introdução e difusão das novas tecnologias têm como motivações básicas o aumento da lucratividade e da capacidade competitiva das empresas. Além disso, elas visam o controle mais seguro sobre o trabalho. Essa é a lógica do sistema capitalista. Não há por parte do capital nenhum interesse filantrópico pelo "bem-estar da humanidade". Ele se apropria inclusive da ciência, dos conhecimentos acumulados pelo homem, para atingir os seus fins lucrativos.
Como diz o sociólogo Pino Ferraris, nesse ponto incorre em erro quem vê a tecnologia "como se fosse um instrumento neutro e dócil, adaptável a todas as boas intenções e conciliável com os mais diversos e contrastantes interesses". Em outras palavras, ilude-se quem não enxerga que "a maquinaria é um meio para produzir mais-valia", como já nos ensinou Karl Marx."[xi]
A globalização econômica ganhou contornos absolutamente refinados a partir dos incrementos da revolução tecnológica acelerada nas últimas décadas, a ponto de autorizar, por exemplo, a mobilidade física e virtual de capitais em um tempo muito rápido. É necessário pontuar que essas novas relações sociais podem contribuir para aumentar o nível de desrespeito aos direitos humanos da classe trabalhadora e de todos os demais setores excluídos da sociedade, considerando a ausência de compartilhamento dos avanços cibernéticos com tais grupos de pessoas. Na verdade, os fatores revolucionados dos meios de produção foram totalmente apropriados pelo capital como natural necessidade do acúmulo de riquezas por parte do regime econômico. O enxugamento do denominado trabalho vivo, sem nenhuma contrapartida, com o consequente crescimento do trabalho imaterial na cadeia produtiva, e a radical fragmentação do processo de feitura dos bens materiais expõem a natureza do modelo de relações laborais captados por Blade Runner.
Não se trata aqui, registre-se, de uma opção entre capitalismo e socialismo, porque essa vertente, sem uma análise aprofundada das virtudes e defeitos dos dois sistemas econômicos, reduziria significativamente o que se pretende explorar no presente ensaio, ou seja, o tratamento dispensado, por determinado tipo de gestão capitalista, ao valor trabalho na era da revolução microeletrônica. Como diz Terry Eagleton, ”enquanto permanece em ebulição um movimento de massa radical, não é difícil invalidar uma oposição binária simplista entre o Sistema e seus Outros”.[xii]
Descartabilidade da força de trabalho e terceirização inserem-se na dinâmica produtiva como fenômenos inevitáveis da economia de mercado sob o giro dado pela tecnologia da informação, ao menos segundo marketing dos grupos hegemônicos da sociedade. Blade Runner, registre-se, longe de ratificar a voz dominante, bem retrata o uso da cibernética no processo produtivo capitalista, onde há flexibilidade, descartabilidade e fragmentação da fábrica, cujas consequências devem ser avaliadas pelo seu público.
Robert Kurz, principal teórico do grupo alemão Krisis, de maneira equivocada, sentencia que “um cadáver domina a sociedade. O cadáver do trabalho. A sociedade dominada pelo trabalho não passa por uma simples crise passageira, mas alcançou o seu limite absoluto. A venda da mercadoria força de trabalho no século XXI será tão promissora quanto a venda de diligência no século XX”.[xiii]
Embora seja objeto de contínua desvalorização discursiva, sob o fundamento de que desempenha papel secundário no contexto da expansiva microeletrônica utilizada no processo produtivo e de que há outras dimensões de opressão a serem combatidas na época dos direitos difusos, o trabalho ainda não perdeu a sua centralidade na sociedade capitalista. Ele continua definindo o modelo de sociedade existente, repercutindo sobre todos os demais valores e embates travados nas variadas esferas da vida social. Ademais, é a ação humana que produz o pensamento, sendo responsável, portanto pelo agir, pelas decisões, emoções e pelos destinos da própria engrenagem cibernética. A máquina jamais subtrairá do homem ações intelectivas como o pensar e o agir, assim como não terá a capacidade de eliminar a força de trabalho, afinal, registre-se, são os seres humanos que projetam as inovações e operam os aparelhos introduzidos como meio de reduzir a quantidade de trabalho vivo no seio da fábrica dotada do mais moderno aparato tecnológico. O Direito do Trabalho, por isso mesmo, continuará presente em um mundo envolto pela tecnologia da informação, devendo se fazer forte e vigoroso enquanto houver humanos labutando como fonte de subsistência e de elevação do nível de vida.
Por outro lado, o enxugamento do trabalho material alcançado pela inserção da robótica, o que deve ser enaltecido e não destruído como fizeram inicialmente os ludistas no século XIX, precisa propiciar melhores condições de trabalho aos humanos, incluindo a redução crescente da jornada. Domenico de Masi recomenda para a sociedade, por ele qualificada como “pós-industrial”, maior tempo para os trabalhadores destinado “a outra coisa”, isto é, maior tempo liberado para as atividades criativas.[xiv].
Quanto ao segundo tópico, propaga-se largamente a ideia de que a terceirização serve para aumentar e racionalizar a produtividade[xv], bem como para ampliar a margem de lucros das empresas. As assertivas são verdadeiras. No entanto, é fundamental analisar a totalidade do fenômeno. Inegavelmente, a terceirização tem sido útil para promover a acumulação de riquezas materiais, diante da especialização e verticalização da engenharia produtiva na era toyotista. Sem descurar deste mecanismo de caráter administrativo-econômico, a fonte de riquezas do capital — a mão de obra — passa a ser sufocada ainda mais com o invento de maior eficácia contra a efetividade dos direitos do trabalho nas últimas quatro décadas. Embora o mais modesto capitalista introduza a terceirização na perspectiva de aumentar a sua margem de lucros, os ideólogos dessa reviravolta econômica tiveram horizonte muito mais amplo, no sentido de derrotar politicamente os trabalhadores enquanto classe social antagônica. É que a terceirização tem a capacidade destrutiva de espatifar trabalhadores, dispersando-os de maneira tão drástica a ponto de inviabilizar novas agregações sob a perspectiva da identidade de classe, além de fragilizar e pulverizar entidades obreiras e todas as suas lutas construídas para defender o Direito do Trabalho ou para reivindicações de outra natureza.
Para além dos aspectos econômicos e políticos, a terceirização tem separado de maneira radical trabalhadores vinculados a um mesmo empreendimento capitalista, cujo tratamento dispensado aos terceirizados é notoriamente discriminatório, a ponto de se proibir o uso por estes dos mesmos banheiros e demais ambientes destinados aos empregados e diretores da empresa principal, segundo noticiado nos últimos anos em alguns meios de comunicação.[xvi] Direitos fundamentais imateriais como respeito à dignidade, à honra, à saúde, à educação e à identidade coletiva não constituem privilégio de uma ou outra fração de trabalhadores, mas verdadeira expressão da luta política por direitos humanos. A invisibilidade social dos trabalhadores terceirizados é ampliada em tempos cibernéticos quando se diz equivocadamente que o trabalho “é um cadáver” a ser sepultado, embora nada se faça sem ele.
Se não bastasse a compreensão dos direitos humanos como processos culturais de luta em defesa da dignidade plena, é certo que os direitos econômicos, sociais e culturais integram o rol de garantias fundamentais previstas em normas nacionais e internacionais, assim expressamente consignados em dispositivos da Constituição da República Federativa do Brasil, do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, da Convenção Americana de Direitos Humanos da OEA e das Convenções da OIT.
Na esteira deste raciocínio, empregar mecanismos como a descartabilidade da força de trabalho e a terceirização, externa ou interna, notórios redutores de direitos econômicos, sociais e culturais, resulta no solene descumprimento de direitos humanos. As lutas políticas empreendidas pelos próprios trabalhadores e a justiciabilidade dos direitos com base em uma teoria jurídica consistente se revelam indispensáveis à construção de cenário permeado de justiça social.
Aplicar sem tréguas os princípios do Direito do Trabalho não deveria estar fora de moda, mesmo numa época em que o menor sinal de resistência aos processos de flexibilidade das relações laborais é inadequadamente qualificado como conduta jurássica dos velhos saudosistas pelo equilíbrio nas relações entre o capital e o trabalho.
Segundo Plá Rodriguez:
"0 Direito do Trabalho surge como consequência de uma desigualdade: a decorrente da inferioridade econômica do trabalhador. Essa é a origem da questão social e do Direito do Trabalho.
As desigualdades somente se corrigem com desigualdades de sentido oposto. Durante certo tempo, conseguiu-se a desigualdade compensatória porque o Estado colocou a favor do trabalhador o peso da lei. Surgiu assim a legislação do trabalho."[xvii]
Na mesma linha, Maurício Godinho Delgado, conforme trecho a seguir transcrito:
"[...] a premissa orientativa consubstanciada no princípio favorece à correta percepção do sentido ou instituto e da regra no conjunto do sistema normativo em que se integra (e também do sentido de outros princípios, é claro). Por essa razão, os princípios, na Ciência Jurídica, não somente preservam irrefutável validade, como se destacam pela qualidade de importantes contributos à compreensão global e integrada de qualquer universo normativo."[xviii]
A eminente Professora da UFMG e juslaboralista Daniela Muradas Reis, autora de uma das mais consistentes obras sobre o princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho, declara que:
"O progresso e não retrocesso social ainda relaciona-se ao princípio da proteção do trabalhador, pedra angular do Direito do Trabalho. O princípio da proteção ao trabalhador, como se sabe, grava a originalidade do Direito do Trabalho, enunciando o seu sentido teleológico. Com lastro na dignidade da pessoa humana e no valor ínsito ao trabalho humano, o princípio tutelar enuncia ser a missão deste ramo jurídico a proteção do trabalhador, com a retificação jurídica da desigualdade socioeconômica inerente à relação entre o capital e o trabalho.
O sentido tuitivo, em uma perspectivas dinâmica, se relaciona à ideia de ampliação e aperfeiçoamento de institutos e normas trabalhistas. Assim, afiança-se o compromisso da ordem jurídica promover, quantitativamente e qualitativamente,o avanço das condições de pactuação da força de trabalho, bem como a garantia de que não serão estabelecidos recuos na situação sociojurídica dos trabalhadores. Por conseguinte, são consectários lógicos do princípio da proteção, o princípio da norma mais favorável e o princípio da progressividade dos direitos sociais."[xix]
Valendo-se da principiologia trabalhista, com destaque para o princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho, os atores comprometidos com o direito obreiro jamais hesitarão em rechaçar as variadas tentativas voltadas para escamotear a essência do tipo de relação jurídica mantida entre o capital e o trabalho, ainda muito mais subordinada, por incrível que pareça, do ponto de vista de apropriação do corpo, da mente, da alma e do tempo integral do empregado, quando em confronto este modo toyotista com o quadro presente na era taylorista-fordista.
Na edificação dos blocos de resistência aos métodos solapadores de conquistas humanas, torna-se indispensável romper com o olhar supostamente neutro do Direito para buscar a essência do sentido de justiça. É fundamental, por este motivo, distinguir o legal do legítimo, a tradição da razão, o direito da moral burguesa, o jurídico da metafísica, como nos ensinou Roberto Lyra Filho na sua persistente luta também contra a dogmática positivista e o jusnaturalismo vistos de forma absolutamente compartimentados e incomunicáveis. Considerava o eminente professor que:
"Somente uma teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa das pontas da antítese (teses radicalmente opostas) entre direito positivo e natural. Isto, é claro, como em toda superação dialética, importa em conservar os aspectos válidos de ambas as posições, rejeitando os demais e reenquadrando os primeiros numa visão superior. Assim, veremos que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica, sem voar para as nuvens metafísicas, isto é, sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histórico, entre espoliados e oprimidos, de um lado, e espoliadores e opressores, de outro."[xx]
Em defesa do direito sem dogmas e de sua natureza dialética, Lyra Filho afirma que:
"A base de toda dialetização eficaz há de ser uma ontologia dialética do direito, sem eiva de idealismo intrínseco e sem compartimentos estanques, entre a síntese filosófica, a análise da dialética social das normas em ordenamentos plurais e conflitos sob o impulso da práxis libertadora. A esta reflexão ficam votados, sob formas e abordagens diversas, todos os meus trabalhos atuais. É essencial que se abandone definitivamente a ideologia da separação. 'Este raciocínio e esta concepção da ciência jurídica são acondicionados historicamente e não representam, como amiúde se considera, um modo de ser do direito e da Jurisprudência: trata-se de concepções nascidas em um período histórico determinado que na realidade é bastante recente' (BARCELLONA & COTTURRI,1976: 77). Por outras palavras, trata-se do renitentemente e já agônico mito burguês."[xxi]
As respostas não convencionais oferecidas por Roberto Lyra Filho para o enfrentamento da crise do Direito guardam semelhança, pelo seu despojamento e ousadia, no campo da arte, com o trabalho de Augusto Boal e o seu Teatro do Oprimido[xxii]. Lyra Filho denuncia o caráter metafísico atribuído ao direito burguês que ignora as diferenças sociais e suas respectivas origens. Boal, por seu turno, tira a fetichização da Arte para que ela cumpra a sua verdadeira função em uma sociedade marcadamente opressora, especialmente durante o período da ditadura militar no Brasil(1964-1985).
Boal e Lyra Filho tinham clareza do papel contra-hegemômico a ser desempenhado pela Arte e pelo Direito em uma sociedade autoritária e excludente do ponto de vista social, capaz de se apropriar do que deve ser construído para libertar o ser humano e não para inferiorizá-lo, como ocorre na atualidade no curso da fantástica revolução cibernética responsável pela diminuição de algumas atividades manuais.
Blade Runner expõe a dura vida da classe trabalhadora em tempos cibernéticos (descartabilidade da mão-de-obra, terceirização, desemprego, informalidade, meio de ambiente dilacerado e falta de sociabilidade social), não assim configurada pelo fato de ter surgido sofisticado fenômeno tecnológico, consigne-se, mas pelo seu uso destinado a aumentar o potencial econômico dos proprietários dos meios de produção. Cabe ao Direito, frente a esta realidade, apresentar alternativas hábeis à preservação e à ampliação dos direitos econômicos, sociais e culturais, passando pelo cumprimento das inúmeras normas asseguradoras de direitos humanos e observância dos princípios do Direito do Trabalho, até o exercício de um direito contra-hegemômico pronto para repelir dogmas artificialmente mantidos e descortinar intenções camufladas sob o manto da neutralidade da ciência jurídica.
5. CONCLUSÃO: A ARTE REVOLUCIONÁRIA TEM MUITO A ENSINAR O DIREITO
Tempos modernos (1936), do genial Charles Chaplin, em uma quase tragicomédia, traz à tona as condições de labor durante a Segunda Revolução Industrial, na época da linha de produção taylorista-fordista: grande fábrica vertical, extrema alienação do trabalho, submissão obreira aos impulsos da máquina, hierarquização autocrática patronal, repressão à organização coletiva, desemprego, centralidade do trabalho, ausência de valorização do trabalhador, controle rígido e direto da produção.
Em Blade Runner (1982), de Ridley Scott, futurista e realista, aparece o tempo seguinte do mundo do trabalho radicalmente transformado pela engenharia robótica, com a automação e a terceirização ocupando largos espaços no processo produtivo.
Ambas as películas, cada uma a seu modo, denunciam formas distintas de exploração do trabalhador. Sintetizam, na tela, parte considerável das relações de trabalho travadas nos últimos cem anos e descrevem, no mesmo lapso temporal, o encontro do homem com a máquina no desenvolvimento de suas atividades profissionais.
Entre outras, o Direito do Trabalho foi uma das mais contundentes respostas a Tempos modernos.
E para Blade Runner? Direitos Humanos em sua integralidade reconhecidos como produtos culturais de lutas coletivas, chancelados por um Direito contra-hegemônico a ser defendido por juristas e não juristas afinados com o verdadeiro Estado Democrático de Direito em tempos de modernidade avançada.
Direito e Arte podem oferecer alternativas para a vida em sociedade de maneira mais equilibrada, a partir da defesa da efetividade dos direitos humanos como prática consistente. Esses dois campos do conhecimento, longe de existirem apenas para os seus fins jurídicos e estéticos, normalmente vislumbrados na qualidade de segmentos totalmente compartimentados, possuem uma razão maior de ser, transcendendo o seu objeto mais imediato.
Em nome da interdisciplinariedade e da influência crítica de uma área sobre a outra, é indispensável haver maior diálogo entre Arte e Direito. Guardada de maior liberdade no processo de criação e muito menos reprimida socialmente, a Arte tem mais a oferecer ao Direito do que o contrário, seja para romper preconceitos, tabus e equivocados dogmas, seja para enxergar melhor o mundo real.
Brasília, 15 de agosto de 2019.
(*) Juiz do Trabalho desde 27 de abril de 1992, mestre e doutorando em Direito e Justiça pela FDUFMG.
[i] CARVALHO NETTO, Menelick de. Apresentação. In PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, XI.
[ii] BLADE RUNNER (O Caçador de Andróides, no Brasil). Diretor: Ridley Scott (EUA, 1982). Cor.
[iii] Vide, entre outros, ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do Trabalho - Ensaio sobre a afirmação e a negação do Trabalho. Boitempo Editorial. São Paulo, 2003. DEDECCA, Cláudio Salvadori. Racionalização econômica e trabalho no capitalismo avançado. Campinas, Editora da Unicamp, 1999, p. 61.;DELGADO, Gabriela Neves. Terceirização:paradoxo do direito do trabalho contemporâneo. São Paulo, Ltr, 2003; MAIOR, Jorge Luiz Souto. A terceirização sob uma perspectiva humanista. In: HENRIQUE, Carlos Augusto Junqueira de; DELGADO, Gabriela Neves(coords). Terceirização no Direito do Trabalho, Belo Horizonte: Mandamentos, 2004; HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 2010. MELHADO, Reginaldo. Metamorfoses do capital e do trabalho. Relações de poder, reforma do Judiciário e competência da Justiça laboral. São Paulo: LTR, 2006;REIS. Daniela Murada. O Princípio da Vedação do Retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2010; URIARTE, Oscar Ermida;COLOTUZZO, Natalia. Descentralización, tercerirización, subcontratión. Informe OIT sobre terceirização, Montevidéo, 5 de julho de 2008(mimeo);VIANA, Márcio Túlio. A Reforma Sindical. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2005.
[iv] HERRERA FLORES, Joaquín.Teoria Crítica dos Direitos Humanos – Os Direitos Humanos como Produtos Culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009.
[v] HERRERA FLORES, Joaquín. A (Re)Invenção dos Direitos Humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p.34
[vi] COSTAS, Douzinas. São os direitos universais?. Projeto Revoluções. Disponível no http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/sao_os_direitos_universais.pdf. Acesso 19.01.2012, p.1-11.
[vii] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009, p.28-29.
[viii] HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2010, p.307.
[ix] HOUTART, François. Los movimentos sociales y la construcción de un nuevo sujeto histórico. Disponível em: <http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct>. Acesso em 19.01.2013.
[x] SENNETT, Richard. A corrosão do caráter – O desparecimento das virtudes com o novo capitalismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, p.21,22 e 23.
[xi] BORGES, Altamiro. Mutações no mundo do trabalho. Disponível em http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=16232. Acesso em 19.01.2013
[xii] EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998,p.17.
[xiii] KURZ, Robert. Grupo Krisis. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad Livros. 2003, P. 38.
[xiv] DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 7ª Edição. São Paulo: Sextante; GMT Editores Ltda, 2000,p 43..
[xv] PASTORE, José. Os rumos da terceirização. O Estado de São Paulo, edição do dia 11 de outubro de 2011.
[xvi] TERCEIRIZADOS NÃO PODEM IR AO BANHEIRO. disponível em .http://www.fetecsp.org.br, acesso em 15.04.2012.
[xvii] RODRIGUEZ.,Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo, LTR, 1993. p. 25
[xviii] DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. 2ª Edição. São Paulo: LTR, 2004. p. 31.
[xix] REIS. Daniela Muradas. O Princípio da Vedação do Retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2010,p.20.
[xx] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 14ª reimp. da 17ªed,2008, p.30.31.
[xxi] LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem Dogmas. Porto Alegre: Fabris, 1980, p.42-43..
[xxii] O Teatro do Oprimido fundado por Augusto Boal entre os anos 1960 e 1970 não se limita a ser uma arte engajada em defesa do aniquilamento de todas as opressões, mas também uma prática genuinamente democrática de criação e exercício do ofício de artista, cujos atores da vida real desempenham os seus papéis segundo a realidade concreta por eles vivenciada e enfrentada., a partir da dinâmica interativa entre profissionais e amadores. Nesse sentido, tal como o Direito sem Dogmas de Lyra Filho, o Teatro do Oprimido de Boal arranca o fetiche da arte para torná-la de fato instrumento de emancipação política, social e cultural dos espoliados pelo sistema.