Kazuo Watanabe, o autor que maior esforço dedicou ao estudo do acesso à justiça no Brasil, resumiu muito bem o alcance desse tema sob a perspectiva brasileira, ao concluir que:
"a) o direito de acesso à justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa;
b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do País; (2) direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características."[i]
A Lei n. 13.467/17 trouxe inovações que se ligam a esse tema, mas em vez de caminhar na direção da ampliação do acesso à justiça o que tentou fazer foi dificultar a vida dos trabalhadores na defesa institucional de seus direitos.
Sendo assim, torna-se necessário visualizar os dispositivos da lei em conformidade com o princípio do acesso à justiça e, no limite, afastar a aplicação daqueles que afrontem, incorrigivelmente, o inciso LXXIV do art. 5º da CF, que dispõe: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” – grifou-se.
A respeito, dispõem os §§ 3º e 4º do art. 790 da CLT, com a redação dada pela lei em questão:
“§ 3º É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”
“§ 4º O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.”
Enfrentando o desafio de buscar uma interpretação conforme a Constituição Federal, a primeira conclusão a que se deve chegar é a de que nos termos do § 3º a assistência judiciária gratuita será concedida, inclusive de ofício, a quem ganha até 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (R$ R$ 5.645,80, em janeiro de 2018), ou seja, R$2.258,32.
Vale reparar que o legislador utilizou o verbo no presente, “perceberem”, o que significa dizer que a situação pretérita pertinente ao eventual vínculo de emprego já cessado, objeto de discussão no processo, não interfere nessa avaliação.
Se no momento da propositura da reclamação o autor estiver desempregado e, portanto, não receber qualquer importância a título de salário, será essa a realidade a ser considerada para o efeito da concessão da assistência judiciária gratuita.
Lembre-se que foi dito, de maneira insistente e até ameaçadora, que os juízes devem seguir os termos da lei, literalmente.
Visualizando o teor dos dois dispositivos, outra conclusão inevitável é a de o § 4º não se trata de uma condicionante da previsão contida no § 3º.
Pela literalidade dos referidos dispositivos, só se pode entender que a concessão da assistência judiciária gratuita no caso do § 3º independe de qualquer comprovação de insuficiência, presumindo-se, pela própria limitação do valor, a debilidade econômica.
A comprovação, portanto, seria restrita à hipótese do § 4º, com relação aos reclamantes cujo salário, no momento da propositura da reclamação, for superior ao limite estabelecido no § 3º (R$2.258,32).
Essa comprovação de insuficiência de recursos, ademais, é uma inovação do legislador trabalhista que traz grave retrocesso ao estágio de proteção jurídica já alcançado no ordenamento brasileiro e que já estava consolidada à atuação da Justiça do Trabalho, conforme Ementas a seguir transcritas:
"Assistência Judiciária - Concessão - Agravo Regimental em Agravo de Instrumento - Assistência Judiciária Gratuita - Incompatibilidade entre o Texto Legal e o Preceito Constitucional - Simples Declaração na Petição Inicial - A declaração de insuficiência de recursos é documento hábil para o deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita, mormente quando não impugnada pela parte contrária, a quem cumpre o ônus da prova capaz de desconstituir o direito postulado. Incompatibilidade entre o texto legal e o preceito constitucional. Inexistência. Agravo regimental improvido." (ARG/AI136910-9 - RS - 2a. Turma - Rel. Ministro Maurício Corrêa - D.J. 22.09.95, p. 30598 in Boletim de Doutrina e Jurisprudência da Justiça do Trabalho da 3a. Região, vol. 16, n. 3, jul/set/95, p. 378).
"Assistência Judiciária - Concessão de Benefício - Constitucional e Processual Civil - Assistência Judiciária - Direito. I- É dever do Estado prestar assistência jurídica integral e gratuita, princípio que não deve sofrer restrição no sentido de se exigir requerimento específico mediante prova da pobreza. Ao contrário, assim como previsto na lei especial, basta a simples afirmação, na própria inicial ou na contestação, de que não tem condições de pagar as custas processuais e os honorários advocatícios. A pobreza, no caso, é presumida, podendo a parte contrária impugnar o pedido. Afinal, trata-se de conferir tratamento igual, isonômico, ao que tem menos. A pobreza, se não humilha, desiguala o litigante rico e o necessitado de recursos financeiros. II- Recurso especial conhecido e provido." (RE/32986-7 993.00066753-2) - RS - 5a. Turma - Rel. Ministro Jesus Costa Lima - D.J. 28.08.1995 - p. 26649 in Boletim de Doutrina e Jurisprudência da Justiça do Trabalho da 3a. Região, vol. 16, n. 3, jul/set/95, p. 387).
"Assistência Judiciária. Nos termos da Lei n. 7.510/86, a assistência judiciária é devida a todo aquele que, na própria petição inicial, afirma não estar em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família." (TRT 12a. Reg. RO-V 1.528/94 - Ac. 2a. T. 6.133/95, 25.7.95 - Rel. Juíza Alveny de A. Bittencourt, in Revista LTr, 60-06/823)
De todo modo, a comprovação em questão pode ser a mera indicação do ganho mensal do trabalhador (quando aja algum, considerando o momento da propositura da reclamação e não a situação pretérita vivenciada na relação de emprego já cessada, como esclarecido acima).
Na avaliação da insuficiência de recurso basta adotar como parâmetro o valor do salário médio do brasileiro e o valor ideal estabelecido para o salário mínimo, levando-se em consideração, ainda, o número de dependes do reclamante e sua renda familiar.
O salário mínimo ideal, segundo o Dieese, para manter uma família, é de R$ 3.706,64 (valor de março/18[ii]), sendo que o salário médio pago ao trabalhador brasileiro não só está abaixo desse valor, como vem diminuindo ao longo dos últimos anos[iii].
Ou seja, seria nova ofensa ao princípio constitucional, além de uma agressão ao raciocínio lógico, exigir que alguém que recebe (afastando-se a situação daquele que recebia e não recebe mais, como dito acima) salário próximo à linha da pobreza, fixada hoje em montante equivalente a cerca de R$550,00 mensais[iv], comprove que o custo de um processo pode colocar em risco seu orçamento familiar, sendo que, no Brasil quase ¼ da população está nessa situação.
Mas o legislador trabalhista foi além nas ameaças ao trabalhador e negou vigência ao preceito constitucional da assistência integral, fazendo com que o proveito econômico obtido pelo pobre no processo servisse de fonte para o custeio do trabalho do perito e dos honorários do advogado da parte contrária.
A respeito, preconizou o § 4º do art. 790-B: “Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo”.
Já o § 4º do art. 791-A, cuidando dos honorários advocatícios, estabeleceu: “Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário”.
Vê-se, claramente, o quanto esses dispositivos contrariam toda tradição jurídica brasileira (de todos os ramos do direito) e colidem com o inciso LXXIV do art. 5º da CF, já referido.
Ao dizerem que mesmo o beneficiário da justiça gratuita será condenado ao pagamento de honorários periciais e advocatícios, estes últimos, inclusive, com execução nos próprios autos, os dispositivos em questão estão, de fato, fazendo uma ameaça aos pobres (ou seja, aos trabalhadores em geral, conforme se extrai da trise realidade econômica brasileira), pressupondo, inclusive, que utilizarão o benefício para formularem pretensões indevidas e aventureiras.
Muito se discute, hoje e sempre, o quanto as atuações punitivas do Estado devem ser precedidas de um devido processo legal e esses dispositivos vão além de todas as concessões já feitas e imaginadas para limitar as possibilidades de defesa em nome da eliminação da impunidade.
O que promovem, como dito, é uma presunção do uso abusivo do direito à gratuidade processual por parte dos trabalhadores, fixando uma punição a priori, sem qualquer direito de defesa.
A intenção indisfarçável do legislador de prejudicar os trabalhadores, beneficiando, por via de consequência, os empregadores que descumprem a lei, é, contudo, claramente, inconstitucional, até porque o aparato jurídico constitucional não comporta pena sem processo e muito menos o preconceito e a discriminação, ainda mais quando provenha da própria lei.
Tivesse o legislador um argumento para limitar o preceito constitucional, na perspectiva da noção de abuso de direito, poderia, no máximo, fixar punições proporcionais e mais eficazes (que não onerassem desproporcionalmente o pobre ou coibisse o acesso à justiça) para os casos, legalmente fixados, de uso abusivo do direito de ação.
No entanto, o legislador cuidou especificamente da litigância de má-fé, tratada como “dano processual”, nos artigos 793-A, 793-B, 793-C e 793-D[v], e, curiosamente, não fez qualquer menção ao beneficiário da assistência judiciária gratuita.
Com muito esforço se poderia admitir que o beneficiário da assistência gratuita não se eximisse das responsabilidades por litigância de má-fé, na forma acima mencionada, mas o legislador, em silêncio eloquente (já que dele cuidou expressamente em outras passagens), o deixou de fora. Então, se na lógica do legislador, não se pode impor pena ao beneficiário da assistência gratuita que litiga de má-fé, muito menos é possível impor custo de índole nitidamente punitiva àquele que exerça regularmente o seu direito de ação.
Cumpre esclarecer que o julgamento da improcedência do pedido, que diz respeito ao direito material posto em discussão, não interfere na análise da regularidade do exercício do direito de ação, pois, como se deveria saber, o direito de ação é autônomo frente ao direito material.
Dito de forma mais direta, quem tem o direito de receber os benefícios da assistência judiciária gratuita, que deve ser integral, como determina a norma constitucional, não pode ver abalado parte desses benefícios porque o juiz julgou improcedente algum dos pedidos que formulou.
A Constituição Federal garantiu o direito de ação a todos os cidadãos, afastando a barreira econômica para aqueles que não tenham como suportar os custos do processo.
Assim, qualquer tipo de ameaça feita pelo legislador (ou pelo juiz) aos que dependam da gratuidade para exercerem o direito de ação tem-se como ofensiva ao inciso LXXIV do art. 5º da CF.
São Paulo, 17 de abril de 2018.
[i]. WATANABE, Kazuo. "Acesso à Justiça e Sociedade Moderna", in Participação e Processo, coordenação de Ada Pellegrini Grinover, RT: São Paulo, 1988, p. 135.
[i]. CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Access to Justice. Sijthoff and Noordhoff - Alpehna Andenrijin, Dott. A. Giuffrè Editore: Milan, 1978, p. 124.
[ii]. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
[iii]. https://g1.globo.com/economia/noticia/salario-medio-mensal-do-brasileiro-teve-queda-de-32-em-2015-aponta-ibge.ghtml
[iv]. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/10/1931680-22-dos-brasileiros-vivem-abaixo-da-linha-da-pobreza-diz-estudo.shtml
[v]. “Art. 793-A. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como reclamante, reclamado ou interveniente.
Art. 793-B. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidente manifestamente infundado;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Art. 793-C. De ofício ou a requerimento, o juízo condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a 1% (um por cento) e inferior a 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.
§ 1o Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juízo condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2o Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
§ 3o O valor da indenização será fixado pelo juízo ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos.
Art. 793-D. Aplica-se a multa prevista no art. 793-C desta Consolidação à testemunha que intencionalmente alterar a verdade dos fatos ou omitir fatos essenciais ao julgamento da causa.
Parágrafo único. A execução da multa prevista neste artigo dar-se-á nos mesmos autos.”