Está muito difícil ter que interromper outras atividades para rebater as múltiplas atrocidades jurídicas que têm sido ditas por aí sobre a “reforma” trabalhista e a sua inserção no ordenamento jurídico. Mas como estão sendo difundidas pela grande mídia, que está cumprindo o papel, no caso, de desinformar a população, exige-se “perder” esse tempo.
Pois bem, ontem foi o jornal Folha de S. Paulo que, em seu editorial “Guerrilha Trabalhista”[i], lançou mão de tática de terrorismo para tentar impedir que a magistratura do trabalho cumpra o seu dever de aplicar o direito.
Não foi capaz, no entanto, de perceber que o Enunciado proposto, quanto ao “objetivo” da “reforma”, não está expresso em nenhum dos artigos da lei.
Não visualiza, também, que foi precisamente a preservação dos direitos fundamentais que norteou as dezenas de enunciados expressos na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, organizado pela Anamatra.
Para não ficar para trás – talvez na concorrência por anunciantes – hoje foi a vez do jornal o Estado de S. Paulo, com a edição do desrespeitoso editorial “Comício Judicial”[i].
O jornal, no entanto, não se dá conta das inconsistências de sua exposição, pois sugere que a magistratura trabalhista montou um palanque para apresentar manifestações panfletárias, dentre elas o “respeito a Constituição”.
Mas o respeito à Constituição, ao contrário do que afirma o jornal, não é pretexto de coisa alguma. Trata-se de um dever funcional e as instituições democráticas, todas elas, deveriam elogiar essa postura dos juízes e não o contrário.
De todo modo, há várias impropriedades técnico-jurídicas na crítica do Estadão que precisam ser enfrentadas, para o devido esclarecimento da população.
O Estadão crê que há uma contradição e um desconhecimento histórico na postura dos juízes e juízas do trabalho de dizerem que vão respeitar a Constituição na aplicação da Lei n. 13.467/17 porque, com isso, estariam privilegiando a CLT, de 1943, que é “um conjunto de leis de origem fascista imposto por decreto pela ditadura Vargas durante o Estado Novo, quando havia uma Constituição outorgada no curso de um golpe de Estado”.
Não é uma tarefa muito simples rebater esse argumento porque corre-se o risco de ser ofensivo e, assim, usar a mesma régua do agressor. Além disso, são tantas as impropriedades históricas e jurídicas ditas em uma só frase, que dificulta uma resposta sintética.
A CLT, editada em 1943, pelo governo Vargas, que ocupava o cargo na condição de ditador, não inaugura o Direito do Trabalho no Brasil, ao contrário do que sugere o Estadão. A legislação trabalhista no Brasil se torna mais intensa a partir de 1930, já sob o governo Vargas, por razões econômicas, no que foi, vale lembrar, amplamente apoiado pelos industriais, sobretudo por conta da contenção que se promoveu da atuação sindical, sendo que, em verdade, a legislação editada foi a representação normativa de direitos já conquistados no curso da Primeira República por meio de negociações coletivas ou por disposições legais de âmbito municipal, estadual e federal.
A CLT, como o próprio nome diz, é uma consolidação das leis existentes, cuja origem é muito mais complexa do que essa simplificação equivocada proposta pelo Estadão.
Além disso, como reconhecido até mesmo no relatório do Senador Ricardo Ferraço, a CLT foi alterada inúmeras vezes de 1943 em diante, sendo que, concretamente, dos 921 artigos originais sobram pouco mais de 180, dos quais nenhum se refere, diretamente, a custo de produção.
Além disso, a Lei nº 13.467/17 não revoga nenhum desses 180 dispositivos da CLT, vigentes desde 1943, alterando, e apenas parcialmente, 7 deles, o que inviabiliza o outro Enunciado da Folha, no sentido de que “A Inadequação dos arcaicos regulamentos do trabalho à realidade cada vez mais dinâmica das empresas tem prejudicado a eficiência e o crescimento da economia”.
A legislação trabalhista foi modificada em todos os governos que se seguiram ao de Vargas, constituindo um grave desconhecimento histórico dizer que é a CLT de Vargas, de origem fascista, que regula as relações de trabalho no Brasil, impedindo o desenvolvimento econômico.
Com o declínio do Estado Novo cresceu muito o número de sindicatos e também a quantidade de trabalhadores sindicalizados, que passa de 474.943, em 1945, para 797.691, em 1946. O aumento da atividade sindical, como reflexo do espírito de redemocratização, foi refletido no ato do governo provisório de José Linhares que por meio do Decreto n. 8.740, de 19 de janeiro de 1946, alterou a CLT, na parte da organização sindical, reconstituindo a liberdade sindical, que já havia sido preconizada na Constituição de 1934
Por esse decreto de 1946 se alterou toda a regulamentação da organização sindical, que seguia, na CLT, o padrão do primeiro Decreto de Getúlio. De uma só vez se deu nova redação aos seguintes artigos da CLT: 511, 513, 514, 515, 517 e § 1º, 518 e §§ 1º e 2º, 520, 522, 525, letra a 526, 527 e letra a, 530, 531, §§ 3º e 532 e §§ 1º, 2º, 3º, 534, § 1º, 536, 537 e § 2º, 538, 540, 542, 543, 547, parágrafo único, 549, parágrafo único, 550 e § 2º, 551, 553, letra c, 554, 555, 556, 557, letras a e b e § 2º 565, 567, 570, 571, 572, 573, § 2º, 574, parágrafo único, 575, 580, letra c, 583, 584, 586 e §§ 5º e 6º, 588 e §§ 2º e 3º, 592, II, letra a e parágrafo único, 594, 596, 597 e parágrafo único, 606 e § 1º e 610, da CLT.
Pela nova redação foi estabelecida a liberdade sindical, ou seja, o permissivo de uma ação sindical sem interferência estatal. O novo texto do art. 511 passou a explicitar que era “livre a organização sindical em todo o território nacional”, enquanto que o anterior tratava da licitude da organização em conformidade com as condições legais estabelecidas.
O artigo 530, da CLT, em sua redação original, proibia que fossem eleitos para cargos administrativos ou de representação econômica ou profissional “a) os que professarem ideologias incompatíveis com as instituições ou os interesses da Nação; b) os que não tivessem aprovadas as suas contas de exercício em cargo de administração; c) os que houverem lesado o patrimônio de qualquer entidade sindical; d) os que não estiverem, desde dois anos antes, pelo menos, no exercício do efetivo da atividade ou da profissão dentro da base territorial do sindicato, ou no desempenho de representação econômica ou profissional; e) os que tiverem má conduta, devidamente comprovada”
A nova alteração trazida pelo Decreto 8.740, de 19 de janeiro de 1946, retirava essas restrições, prevendo apenas a proibição de eleição para “a) os que não tiverem aprovadas as suas contas de exercício em cargo de administração; b) os que houverem lesado o patrimônio de qualquer entidade sindical; c) os que não estiverem, desde dois anos antes, pelo menos, no exercício efetivo da atividade ou da profissão dentro da base territorial do sindicato, ou no desempenho de representação econômica ou profissional; d) os que tiverem má conduta, devidamente comprovada.”
Mas a vigência de tal Decreto não durou muito. Com o advento do governo Dutra, o Decreto-Lei n. 8.987-A, de 15 de fevereiro de 1946, revogou o Decreto 8.740/46 e revigorou os termos da CLT.
Assim, embora se possa argumentar que a organização sindical brasileira, com natureza corporativa, tenha sido implementada por Vargas a partir de 1931 (e não a partir de 1943), a sua vigência de 1946 em diante está ligada aos interesses do governo militar e da elite da classe empresarial brasileira, não podendo ser atribuída a Vargas.
Por ocasião da ditadura civil-empresarial-militar é possível verificar uma intervenção quase que diária na CLT, para efeito de manter sobre controle a atuação sindical e impor retrocessos aos direitos trabalhistas. Destacam-se, neste período, a revitalização, pelo Decreto-Lei n. 05, de 4/4/66, dos artigos 238 e 244, os quais haviam sido modificados no governo de Goulart com o objetivo de garantir a liberdade social; e a revogação, pelo Decreto-Lei n. 229, de 28/02/67, do art. 530, cuja redação vigente desde a última alteração proposta por Vargas, em 1952, também visava garantir a liberdade sindical.
O Decreto-Lei n. 229/67, aliás, é quase uma nova CLT, vez que modifica, revogando ou alterando de alguma forma, 200 artigos da CLT. O DL 229 altera os arts. 13; 14; 15; 18; 20; 21; 22; 24; 26 27; 28; 29; 31; 32; 33; 36; 37; 39; 40; 42; 43; 44; 47; 49; 51; 52; 53; 54; 55; 56; 70; acresce o parágrafo único ao art. 78; altera os arts. 80; 140; modifica o nome do Capítulo V; altera os arts. 154; 155; 156; 157; 158; 159; 160; 161; 162; 163; 164; 165; 166; 167; 168; 169; 170; 171; 172; 173; 174; 175; 176; 177; 178; 179; 180; 181; 182; 183; 184; 185; 186; 187; 188; 189; 190; 191; 192; 193; 194; 195; 196; 197; 198; 199; 200; 201; 202; 203; 204; 205; 206; 207; 208; 209; 210; 211; 212; 213; 214; 215; 216; 217; 218; 219; 220; 221; 222; 223; 224; 362; 374; 379; 389; 392; 393; 397; 402; 403; 405; 406; 407; 408; 413; 417; 418; 420; 421; 434; 435; 436; 441; acresce o § 2º. ao art. 443; altera o art. 445; acresce o § 3º. ao art. 457; altera o art. 458; acresce os §§ 2º a 4º art. 462; altera o art. 473; o § 4º. do art. 478; o art. 510; acresce o parágrafo único ao art. 529; altera o art. 530; acresce o parágrafo 5º. ao art. 532; altera os arts. 543; 544; 553; 576; 579; 592; 611; 612; 613; 614; 615; 616; 617; 618; 619; 620; 621; 622; 623; 624; 625; 628; 629; 630; 635; 636; 637; 640; 654; 656; 661; 662; 702; 709; 789; 790; 836; 894; 896; 899; revoga os arts. 45, 46, 121, 127, 128, 398, 536, 567; 568; 569, e os §§ 2º. dos arts. 573 e 904, passando os §§ 1º para parágrafo único.
E paremos por aqui, sem falar, por exemplo, das diversas disposições legais de flexibilização introduzidas na CLT na década de 90, porque o relato das alterações legislativas sofridas pela CLT ao longo de sua história não teria fim, até porque os equívocos do editorial do Estadão vão muito além desse desconhecimento histórico.
Juridicamente falando, nenhuma lei vigora e é aplicada no país sem respeito à Constituição Federal e, assim, chega a ser risível acreditar que seja o Decreto 5.452, de 1º de maio de 1943, que esteja, ainda hoje, sendo aplicado pelos juízes.
A legislação trabalhista foi abarcada pela Constituição de 1946, depois pela de 1967 e, finalmente, pela Constituição de 1988. Tecnicamente, os dispositivos legais são ou não recepcionados pela nova Constituição. No caso da legislação trabalhista, vários foram, a propósito, os dispositivos legais que perderam vigência com o advento da Constituição de 1988, por não terem passado pelo crivo da recepcionalidade.
Assim, só haveria a contradição apontada pelo Estadão se o ano 1943 tivesse sido o ano passado; ou seja, se não tivessem passados 74 anos entre aquela data e o presente ou que nada tivesse ocorrido neste período, caso reconhecido como existente.
De fato, não há nenhuma contradição na atuação dos juízes do trabalho, vez que não estão estabelecendo uma contraposição entre um Decreto de um ditador e uma lei que, segundo argumenta o Estadão, foi aprovada democraticamente. A afirmação de que o instrumento jurídico que ainda reguladora das relações de trabalho no Brasil é a CLT de 1943 não passa de uma ficção, um mito, que apenas serve ao propósito não revelado da retirada de direitos dos trabalhadores.
Mas admitamos o pressuposto de que, como querem fazer supor a Folha e o Estadão, a Lei n. 13.467/17 esteja acima da Constituição e que ela represente uma fórmula para superar, enfim, o atraso da legislação trabalhista no Brasil.
Deve-se verificar, neste aspecto, que a Lei nº 13.467/17 não é um Código do Trabalho. Sequer é uma lei esparsa, que regula, de forma completa e por si, uma dada relação jurídica.
A Lei nº 13.467/17 é uma lei que trata de tudo ao mesmo tempo e o faz – de forma atabalhoada, dada a pressa pela qual se a pretendeu impor – mediante introduções de dispositivos no corpo de CLT, acrescendo artigos, incisos parágrafos e letras aos já existentes e modificando alguns poucos.
Neste sentido, por boa técnica jurídica, há de se compreender, obrigatoriamente, que a Lei nº 13.467/17 revitalizou todos os demais dispositivos da CLT com os quais interage diretamente ou com relação aos quais não se contrapôs.
Não há, portanto, como supõe o Estadão, uma contraposição temporal entre os diversos dispositivos que, agora, compõem a CLT, quais sejam: os da Lei nº 13.467/17 e os que já lhe integravam – por obra de diversas outras leis.
Não há, igualmente, uma superioridade formal entre os novos dispositivos e aqueles que foram revitalizados. Aliás, vistas com o devido cuidado jurídico, as introduções não abalaram os preceitos conceituais trabalhistas.
O desespero da Folha e do Estadão talvez se justifique pela percepção de que a Lei nº 13.467/17 é, efetivamente, um atropelo jurídico, para dizer o mínimo, e querem, até mesmo ao custo da ordem democrática, evitar que isso seja dito pelos juízes e juízas do trabalho.
E qual o propósito disso? Não querem que a magistratura evite que os direitos fundamentais dos trabalhadores sejam suprimidos? Mas não foi dito o tempo todo que a reforma não suprimiria direitos fundamentais e respeitaria as garantias trabalhistas constitucionalmente previstas?
Diante dessas indagações, que, com perplexidade, decorrem das objeções feitas pelos editoriais mencionados, a questão que se impõe é: mentiram antes, ou estão mentindo agora?
O Estadão, a propósito, chega a dizer que Lei n. 13.467/17 “reduziu parte da discricionariedade da magistratura trabalhista, restabelecendo o equilíbrio entre os Poderes” e teria sido isso que “provocou a reação dos magistrados trabalhistas, com apoio de procuradores e auditores trabalhistas”, mas não há um só dispositivo na Lei nº 13.467/17 que trata dessa suposta “discricionariedade da magistratura”, até porque o que o Estadão chama de discricionariedade é o exercício do dever jurisdicional, ou o poder dos juízes de, fundamentadamente, dizerem o direito.
Agora, acusar os juízes de quererem “impedir a entrada em vigor da reforma trabalhista, por meio de artimanhas hermenêuticas”, dizendo que isso “não passa de mero pretexto para justificar a pretensão de governar o País e ditar normas à sociedade”, e que essa atuação da magistratura constituiria uma afronta ao Estado de Direito, atinge o plano máximo da ofensa ao Judiciário trabalhista e a própria racionalidade, pois faz supor que os juízes e juízas do trabalho não exercem poder jurisdicional e que é a sua vontade, a do Estadão, que deve ser obedecida pela magistratura. A figura jurídica mais própria para essa visualização seria, talvez, a do “Estadão de Direito”, ou, ainda melhor, "Estadão de exceção".
Fato é que goste ou não o Estadão, são os bacharéis de direito, aprovados em concurso público para o exercício da magistratura, exercendo o poder constitucional, junto com todos os demais profissionais do Direito, em debate franco e aberto, que irão interpretar e aplicar a Lei nº 13.467/17, e o farão em conformidade com as demais leis do país, as normas Constitucionais, os princípios, conceitos e institutos jurídicos, e os preceitos internacionais ligados aos Direitos Humanos e às Convenções da OIT, e não para atender esse ou aquele interesse específico.
E o desafio que se deixa aqui expresso ao Estadão é o de que formule bons argumentos jurídicos para se opor às decisões judiciais porque na base do grito, da pressão, do desconhecimento histórico, de inverdades, artifícios e ofensas não vai dar!
São Paulo, 15 de outubro de 2017.
[i]. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/10/1926959-guerrilha-trabalhista.shtml
[ii] http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,comicio-judicial,70002044671