Por Elinay Melo, Laura Benda, Núbia Guedes, Patrícia Maeda e Sofia Lima Dutra
No último dia 30 de março, Tatiana Moreira Lima, juíza de direito responsável pela Vara da Violência Doméstica do Fórum Regional do Butantã, São Paulo/SP, sofreu um grave atentado. O autor dessa violência, Alfredo José dos Santos, seria julgado pela magistrada por agressões praticadas em 2013 contra sua então esposa. Dias antes do julgamento, ele invadiu o fórum, incendiou um corredor e, imobilizando Tatiana com uma “gravata”, jogou líquido inflamável em ambos. Ameaçou ainda acender um isqueiro e manteve-a como refém até ser detido por policiais militares.
No último dia 05 de abril, a professora Janaína Paschoal passou a ser alvo de ataques misóginos nas redes sociais, após discursar em ato de apoio ao impeachment da Presidenta da República, realizado no Largo do São Francisco (USP), em São Paulo. As notícias e menções ao evento estão, em maioria, recheadas de palavras agressivas à sua postura, que é classificada como louca, desequilibrada, histérica. Rapidamente, “memes” com a professora viralizaram na internet, inclusive com vídeos comparando-a à personagem principal do filme “O Exorcista”.
O que esses acontecimentos, aparentemente desconexos, têm em comum? Nenhum, provavelmente, teria ocorrido se os sujeitos em questão fossem homens.
De fato, todos os três expõem a virulência psicológica e física a que são submetidas as mulheres, em pleno século XXI, independentemente de serem elas a Chefe do Poder Executivo do País, um membro do Poder Judiciário ou um membro da Academia, o que nada mais é que reflexo de uma sociedade patriarcal que tenta ratificar a hegemonia masculina por meio da submissão da mulher.
De acordo com o significado exposto por Carme Alemany, as violências “praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes inflingem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade.” Trata-se, assim, de violência de gênero.
Ao falarmos de gênero, ou relações de gênero, tratamos da construção social das identidades feminina e masculina, assim como da forma de relação social que se estabelece entre mulheres e homens, entre mulheres entre si e homens entre si. A escolha das expressões “relações de gênero” ou “identidades de gênero” se deve à intenção de deixar bem claro que as desigualdades entre homens e mulheres são construídas pela sociedade e não determinadas pela diferença biológica entre os sexos.
Assim, as atribuições sociais destinadas a homens e mulheres fundamentam-se em valores sócio-culturais estabelecidos por uma determinada sociedade, a qual atribui lugares distintos a cada um: há a expectativa de que a mulher ocupe o espaço privado, enquanto ao homem cabe o espaço público. Como resume Roswitha Scholz: “A esfera privada, consequentemente, é ocupada pelo tipo ideal "feminino" (família, sexualidade, etc.), ao passo que a esfera pública ("trabalho" abstrato, Estado, política, ciência, arte, etc.) é "masculina". De forma ideal, a mulher seria assim o "recosto" social para o homem, que age na esfera pública.”
Portanto, uma mulher que é professora universitária, juíza ou Presidenta da República estaria ocupando um lugar que não é o dela. E, a uma intrusa, resta ser retirada ou, se isso não é possível, ser, ao menos, silenciada.
O caso da juíza Tatiana é um exemplo de silenciamento à força, de modo mais literal. Houve agressões físicas, como puxões de cabelo, ameaças à vida e xingamentos como “patifa” (que, entre outros significados, é pessoa indigna de confiança). Isso nos sugere que o homem que agrediu uma mulher não aceita a decisão de outra mulher que o condena, já que essa não seria digna de julgá-lo, evidenciando uma violência de gênero.
O caso da Presidenta Dilma é ainda mais emblemático quanto ao aspecto simbólico da misoginia. Além do episódio mencionado, as inúmeras violências que ocorrem desde o início do governo, as quais têm se intensificado nas últimas semanas, expressam de forma contundente a vulnerabilidade social a que as mulheres brasileiras estão submetidas. Discursos são postos em ação, por inúmeros agentes e assumindo variadas formas, sempre no intuito de forjar um objeto: a mulher incapaz. São práticas que visam a cristalizar a hegemonia do masculino, perpetuando uma feminilidade subalterna, ou seja, uma condição de subordinação da mulher na sociedade. Objetivar o corpo da Presidenta Dilma como um corpo doente, anormal e desarrazoado, é uma estratégia de ataque ao seu lugar institucional, sobretudo quando se trata de uma distorção da realidade. Dessa feita, patologiza-se sua condição física, individualizando a loucura no corpo da Presidenta, para obscurecer as reais forças em jogo na disputa política e econômica que domina o Brasil. Como se não importasse que o corpo da Presidenta Dilma Rousseff, em vez de ser demente e desequilibrado, não fosse, ao contrário, um corpo marcado por lutas e resistências.
É paradoxal que o mesmo tipo de ataque tenha acontecido com a professora Janaína, que vem a ser uma das pessoas de discurso mais contundente em face da Presidenta. A fala de tom elevado e o uso de recursos teatrais duvidosos pode ser criticado, especialmente quanto ao conteúdo, mas o que se vê, novamente, é a redução a um enunciado: mulher louca.
Existe um termo que vem sendo difundido pelo movimento feminista que dá conta justamente desse fenômeno: Gaslighting. A origem da nomenclatura é o filme "Gaslight"(1944), no qual um homem, com o intuito de roubar a fortuna de sua esposa, faz com que ela seja tida como louca e, consequentemente, internada em um sanatório. Em suma, gaslighting é basicamente o processo de desestabilização de uma mulher, em qualquer nível ou circunstância, taxando-a de louca, exagerada, dramática, histérica.
Se houve uma conquista mínima de direitos, por exemplo: de maior acesso à educação e ao trabalho (ainda que, em média, os homens brasileiros recebam salários 30% maiores, conforme pesquisa do BID), a violência é digna do legado patriarcal mais comezinho. Sem especificar a questão das mulheres negras, que é ainda mais gritante, basta dizer que, se não matam as mulheres por meio do feminicídio e da negação aos direitos sobre o seu corpo, os homens as aniquilam com o silenciamento mais brutal, a desqualificação mediante a violência psiquíca.
Sob esse olhar sádico e machista, as mulheres passam a ser ofendidas quase que cotidianamente, para mostrar que, por serem mulheres, não possuiriam equilíbrio emocional para comandar e, por isso, suas opiniões não mereceriam qualquer atenção, bem como seu riso, seu choro, sua fala, suas roupas, sua aparência física seriam justificadamente ridicularizados e desqualificados.
Talvez mais perverso ainda seja a reprodução da misoginia pelas próprias mulheres ao encamparem esse papel agressor, destilando ofensas com tal conteúdo contra as “juízas”, “acadêmicas”, “presidentas” etc. Eventuais diferenças sociais, políticas ou ideológicas não afastam o gênero que as une. De modo que o uso desse tipo de violência por mulheres como argumento para desqualificar uma “adversária” não lhes traz nenhuma vitória ou vantagem, pois atinge a todas as mulheres como gênero, inclusive às agressoras, que se tornam vítimas do próprio veneno.
Assim, que desses episódios infelizes reste a lição: empoderem-se mulheres e recusem veementemente a reprodução do discurso patriarcal, misógino e discriminatório com o gênero que as une. Afinal, a luta pela conquista dos direitos das mulheres é, fundamentalmente, a luta por permanecer viva - no corpo e na fala.
Elinay Melo é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 8ª Região. Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp. Diretora Financeira da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região - AMATRA8 (Biênio 2016/2018). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Laura Benda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 2ª Região. Diretora de Assuntos Legislativos e Institucionais da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região - AMATRA 2 (Biênio 2016/2018). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Núbia Guedes é Juíza do Trabalho Titular da VT de Monte Dourado no TRT 8ª Região. Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp. Diretora para Juízes Fora de Sede da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região - AMATRA8 (Biênio 2016/2018). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Patrícia Maeda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 15ª Região. Mestranda em Direito do Trabalho pela USP (2013/2016). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC/USP). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Foi Auditora Fiscal do Trabalho.
Sofia Lima Dutra é Juíza do Trabalho Substituta no TRT da 15a Região. Especialista em Economia do Trabalho pela UNICAMP. Membro da Comissão de Prerrogativas da AMATRA 15 (Biênio 2015/2017). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).