Nos dias que correm está na moda, mais do que nunca, falar mal dos direitos trabalhistas.
A classe trabalhadora e o mundo jurídico trabalhista, na sua maior parte, em razão disso, foram conduzidos, quase que obrigatoriamente, a uma atitude, necessária, cabe frisar, de defesa da legislação trabalhista e do Direito do Trabalho.
Essa postura traz consigo, no entanto, o risco da perda do senso crítico da realidade, com estímulo a uma atitude conservadora.
O forte ataque midiático, articulado com aqueles que estão no poder, tem uma função em si, independente de serem de fato implementadas as reformas que projetam, que é a de tentar colocar a classe trabalhadora na defensiva para, com isso, não apenas interromper o curso de muitos avanços que se vinham concretizando na racionalidade jurídica, impulsionados pela mobilização social, como também para desviar a atenção das questões mais intrincadas da articulação parlamentar-midiática desenvolvida para gerar a quebra institucional e desviar o foco da operação abafa nas investigações da Lava Jato. Enquanto os trabalhadores se mobilizam para não perder direitos, os avanços são evitados e os golpes se estabilizam...
Forja-se uma situação para que a preservação da realidade existente pareça ser uma grande vitória, distorcendo a realidade e invertendo os papéis: o reacionário se passa por inovador e o revolucionário se transforma em conservador.
Do ponto de vista estrito dos direitos trabalhistas é urgente sair dessa cilada, porque, afinal, a situação da classe trabalhadora, como pode ser percebida ao longo de toda a história da República, é e sempre foi de extrema indigência, fazendo com que a atitude de resistência não seja nem um pouco suficiente.
Vejamos, por exemplo, a questão da terceirização.
Todos os problemas identificados na terceirização não dizem respeito ao futuro, ao seja, à realidade projetada com a possível aprovação do projeto de lei que prevê sua ilimitada ampliação, mas sim à situação que atinge, no presente, a 12 milhões de trabalhadores. Então, se do ponto de vista do projeto de avanço social por meio da efetivação dos preceitos constitucionais e internacionais de preservação da dignidade humana dentro da lógica do modelo de sociedade capitalista é altamente importante resistir à ampliação da terceirização, pelo mesmo motivo se faz necessário impedir que a terceirização, tal como hoje se vê acatada juridicamente, continue massacrando 12 milhões de pessoas pelo Brasil afora.
O fato é que, diante das ameaças de retrocessos, o Direito do Trabalho, que nos vemos forçados a defender, não tem sido eficiente para inibir a superexploração do trabalho, ao menos considerando o modo como é normalmente aplicado.
O Direito do Trabalho, ademais, tem se mostrado o mais frágil dos direitos, quando deveria ser o mais eficaz, vez que lida com a preservação e a elevação da condição humana, valendo lembrar a função do Direito do Trabalho de conferir padrões mínimos de viabilidade ao modo de produção capitalista, que, pelos ataques que faz à modulação trabalhista, se mostra, cada vez mais, autofágico.
No Brasil, explica-se essa situação por razões históricas.
O Direito do Trabalho, que foi constituído por uma série de conquistas da classe trabalhadora, derivada de muita luta, desde o momento em que foi assumido, de forma usurpada, como obra do Estado e transformado em estratégia para a concepção de um capitalismo controlado, acabou perdendo a sua feição de um direito, que gera obrigações e que conduz aquele que não cumpre as suas normas ao plano da ilegalidade.
Assim, fomos acostumados a considerar o desrespeito às leis trabalhistas como algo normal e não como uma ilegalidade e é por isso, inclusive, que muitos empregadores que não registram seus empregados, que não têm cartão de ponto etc., sentam-se à mesa de uma sala de audiências na Justiça do Trabalho sem qualquer constrangimento – aliás, bastante à vontade eu diria – e não são admoestados pelo juiz.
A ilegalidade trabalhista, mesmo quando atestada, é tratada como “inadimplemento contratual”, sendo que o efeito judicial dessa declaração é unicamente o de condenar o empregar a fazer aquilo que já devia ter feito. É mais ou menos como se uma pessoa cometesse a ilegalidade de furtar um carro e o efeito jurídico do seu ato fosse unicamente o de devolver o carro.
Da forma como se faz atuar o Direito do Trabalho, o empregador que não paga horas extras de seus empregados está unicamente sujeito ao risco de ter que pagá-las anos depois, em uma demorada lide processual, que é, quase sempre, mais uma punição ao trabalhador.
Descumprir a lei trabalhista vale a pena e é por isso, aliás, que existem milhões de reclamações trabalhistas no Brasil e não por conta da complexidade da legislação como, de forma até ofensiva, tenta-se difundir midiaticamente.
O benefício econômico de não cumprir a lei se reforça por duas circunstâncias: a de que vários trabalhadores não acionam seu ex-empregador, também para não correrem o risco de não obterem novo emprego, risco ampliado agora que o STJ disse que fazer “lista negra” é um “direito” da classe patronal; e a de que o Judiciário trabalhista ainda insiste em pronunciar a prescrição qüinqüenal mesmo que a garantia no emprego, prevista no inciso I, do art. 7º da CF, ainda não tenha sido regulamentada, como requer a leitura jurídica dominante.
O resultado é que a realidade no Brasil é a da ilegalidade institucionalmente admitida nas relações de trabalho.
Para entendermos melhor essas afirmações, imaginemos uma situação – fora do âmbito das relações de trabalho – e apliquemos nela o Direito do Trabalho.
O fato: um sujeito, chamado José, entra em um supermercado, denominado Pegue e Leve, pega 12 batatas e sai sem pagar.
Aplicando-se o Direito do Trabalho nessa hipótese, o dono do supermercado, para reaver as suas batatas, terá que entrar com uma ação na Justiça e esperar alguns meses até a realização da audiência.
Na audiência, terá que ouvir o juiz perguntar para José: “Tem proposta de acordo?”.
E José, muito polidamente, responderá: “Sim, para colaborar com a Justiça, ofereço 8 batatas, em oito parcelas”.
O Juiz, então, dirá: “Muito obrigado, é uma boa proposta. O que diz o representante do Pegue e Leve?”.
O representante hesita e o juiz insiste: “Olha é melhor um acordo ruim do que uma boa demanda. E, afinal, 8 batatas já é melhor que nada, até porque sabe-se lá quando vão ser recuperadas as 12 batatas se é que vão, vez que o processo pode demorar muito. Além disso, novas batatas podem demorar a chegar e sem batatas não dá para o supermercado se manter em funcionamento adequado.”
Mas, o representante do supermercado não se deixa levar pelos argumentos do juiz e o acordo não se realiza.
Vem a sentença, cujo conteúdo é: condenar José a devolver as 12 batatas.
Só que José não se dá por vencido e recorre, afinal assiste-lhe o direito ao duplo grau de jurisdição.
Anos depois, tem-se a notícia: a sentença foi mantida.
Mesmo ciente da decisão, José não devolve as batatas, até porque a essa altura já as consumiu ou vendeu.
Dá-se início, assim, à fase de execução, e José ainda se vê amparado pelo princípio da “execução menos gravosa”, pela nova possibilidade de parcelar a dívida e pelo incentivo à conciliação pautada pela ânsia do Judiciário de se legitimar perante a sociedade por meio de números de produção e pela procura de uma celeridade estimulada mesmo ao custo da própria eficácia do direito.
Essa situação, por certo, atrairia a repulsa de muita gente. Mas vejam, é exatamente isso o que se tem feito, ao longo de décadas, com os direitos trabalhistas, mesmo que a doutrina insista em dizer que se trata de direitos fundamentais, com natureza alimentar, e que são irrenunciáveis.
Pois bem, já que se está falando tanto de reforma, que tal implementar uma reforma efetivamente importante? A de fazer valer a legislação do trabalho.
Isso serviria, inclusive, para que as críticas que se fazem à legislação trabalhista pudessem ser alvo de algum exame mais sério, pois se ela nunca foi efetivamente aplicada entre nós, como pode ser acusada de “inviabilizar o desenvolvimento econômico”, como os assaltantes da racionalidade gostam de dizer?
Concretamente, apliquemos o Direito do Trabalho como a ordem jurídica não trabalhista resolveria o conflito entre José e Pegue e Leve: ao sair do supermercado, flagrado pelas câmeras, José seria apreendido pela vigilância privada ou perseguido pela Polícia e preso. As batatas seriam imediatamente devolvidas ao supermercado, mas isso não bastaria, pois José seria encaminhado à Delegacia, onde prestaria depoimento e depois, se pronunciada a denúncia, seria submetido a um processo criminal. O supermercado, caso pretendesse, também poderia propor uma ação civil contra José para a reparação dos danos experimentados, sendo que, se condenado, José ainda teria também que pagar os honorários advocatícios do advogado do supermercado.
A analogia não é tão pertinente, pois, afinal, os direitos trabalhistas, que estão ligados à condição humana dos trabalhadores, constituem um valor juridicamente bem mais relevante do que as batatas. O problema é que da forma como o Direito do Trabalho se aplica, se pensássemos os direitos como batatas a solução seria bem mais eficaz.
De um ponto de vista bastante restritivo os direitos trabalhistas não deixam de ser bens materiais, porque, afinal, na origem do capitalismo o trabalho humano foi deslocado do trabalhador e transformado em força de trabalho para que pudesse ser comercializada na forma de uma mercadoria como outra qualquer, seguindo o padrão da lei da oferta e da procura. Os direitos trabalhistas constituem, assim, o preço da mercadoria trabalho, tanto que quando se quer atacar os direitos trabalhistas fala-se em custo do trabalho.
Se um trabalhador realiza horas extras, o que ele está fazendo é entregar uma mercadoria ao empregador, sendo que há entre ambos, como há, ademais, entre todas as pessoas da sociedade, a obrigação de pagar pelas mercadorias recebidas, para que possam ser apropriadas. Não havendo a paga, o que se tem é um furto, que é, inclusive, qualificado, quando é reduzida à impossibilidade a resistência da vítima.
Mas nem se está propondo a aplicação das normas do Direito Penal nessa situação. O que se está dizendo é que o Direito do Trabalho deve ser pensado como um efetivo direito, fazendo com que o desrespeito aos direitos trabalhistas seja visto, enfim, como um ato ilícito, que efetivamente é, e que as soluções jurídicas passem a ser efetivamente aptas para garantir a aplicabilidade dos direitos, o que exige a necessária punição dos agentes agressores.
Ora, se um empregador não paga as horas extras do trabalhador, o efeito jurídico não pode ser o de simplesmente devolver ao trabalhador a mercadoria apropriada de forma ilícita, a força de trabalho. O delinquente deve ser punido; a mercadoria ou seu valor equivalente deve ser devolvido, com juros e correção monetária; a vítima, pelo dano experimentado, caracterizado pela extração forçada de valor, com redução das possibilidades de resistência, deve ser indenizada; e os todos os custos do processo, inclusive do advogado, devem ser suportados pelo infrator.
Esses, ademais, são os efeitos jurídicos mínimos, pois pensada a situação com o olhar da natureza estritamente patrimonial dos direitos trabalhistas, vislumbrando a força de trabalho como o único bem do qual os trabalhadores são, de fato e de direito, proprietários. Se os direitos trabalhistas fossem percebidos e tratados como direitos fundamentais, outros seriam os efeitos necessários, mas aí já é tema para outra conversa.
De todo modo, se os juristas – e os segmentos efetivamente sérios da sociedade – já percebessem o quanto a classe trabalhadora tem sido vítima de uma violência cotidiana, fruto da cultura institucionalizada de que direitos trabalhistas não são direitos e sim “favores”, e começassem a aplicar aos direitos trabalhistas a proteção jurídica que conferem às batatas, a sociedade brasileira seria um pouco menos ruim.
Enfim, já que está na moda falar de reforma trabalhista, como sugeriu, recentemente um dos “grandes estudiosos” da legislação trabalhista no Brasil, o Presidente da Riachuelo, em artigo publicado em espaço nobre de um jornal de grande circulação, que tal, então, começarmos pela consideração de que direito trabalhista é lei e quem o descumpre é um fora da lei?
No modelo de sociedade capitalista não há como os trabalhadores serem os vencedores, entretanto, diante da realidade brasileira, já terão uma condição bem melhor se seus direitos forem considerados como batatas.
Então, com o perdão do trocadilho um tanto quanto incompleto: aos trabalhadores as batatas!
São Paulo, 13 de setembro de 2016.