Manifestei-me em outros dois textos sobre as questões jurídicas que envolvem o trágico acidente do trabalho ocorrido em Brumadinho(*) – o maior da história do Brasil.
Projetava que o evento imporia a necessidade de uma reviravolta jurídica, atingindo, principalmente dois aspectos: o da reparação; e o da prevenção. E nos dois aspectos se exigiria a necessária superação das limitações e das diretrizes traçadas pela “reforma” trabalhista.
No plano da reparação, o essencial seria, primeiro, o reconhecimento da responsabilidade objetiva, para que, ao menos, se afastassem o atrelamento da responsabilidade à comprovação de dolo ou culpa grave do empregador, o que, inclusive, atrai as intermináveis discussões processuais com as quais se buscam excludentes por meio da acusação de culpa exclusiva ou concorrente da vítima, além da prática, pela vítima, de “ato inseguro”.
A comoção social compreensivelmente gerada pela tragédia não comportaria o efeito de decisões judiciais que excluíssem a responsabilidade da Vale pelos acidentes ou que fixassem indenizações nos limites fixados pela lei da "reforma" trabalhista.
Neste último aspecto, aliás, os próprios defensores da "reforma", diante de críticas feitas à limitação, vieram a público (logo eles que acusavam de rebeldes os juristas que diziam que todo texto legal deve ser interpretado e aplicado em consonância com os princípios jurídicos e demais leis) propor uma interpretação axiológica do texto da lei, para que a limitação não fosse aplicada no caso do evento morte.
Claro, não se tinha qualquer garantia quanto a nenhum desses efeitos, até porque, em muitos julgamentos, pós-tragédia, os parâmetros anteriores se mantinham um tanto quanto inabalados.
Mas antes que tudo se esquecesse completamente, o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e a Vale S/A, os primeiros, em atuação institucional competente, e o segundo, em comportamento responsável, todos, pois, em atitude que se pode dizer elogiável, considerados, sobretudo, os já tradicionais padrões de conduta verificáveis em processos que envolvem acidentes do trabalho, embora, claro, sem a mesma tragicidade, conseguiram mudar, de uma só vez e de uma vez por todas, os parâmetros da defesa jurídica da vida no ambiente de trabalho.
Com a participação essencial dos Sindicatos de Trabalhadores, também presentes à audiência, foi entabulado acordo nos autos da Ação Civil Pública Cível 0010261-67.2019.5.03.0028, com trâmite na 5ª Vara do Trabalho de Betim, sem que se tivessem transcorridos os quase infindáveis anos de tramitação processual, anos nos quais, inclusive, como dito em um dos textos anteriores, para se eximirem de responsabilidade, muitas empresas costumam maltratar um pouco mais a vítima, com alegações do cometimento de ato inseguro e até de culpa exclusiva das próprias vítimas, sendo que, inclusive, muitas vezes, ainda saem vitoriosas.
Aliás, dada a extrema relevância do ato judicial praticado, é justo e necessário que todos os personagens presentes sejam nominados. São eles:
Renata Lopes Vale (Juíza do trabalho); Sônia Toledo Gonçalves, Luciana Marques Coutinho e Geraldo Emediato de Souza (Procuradoras e Procurador do Trabalho - MPT); João Márcio Simões (Defensor Público da União); Agostinho José de Sales e Luciano Ricardo de Magalhães Pereira (Presidente e Advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração de Ferro e Metais Básicos de Brumadinho e Região); José Antônio da Cruz, Carlos Antônio Sampaio Dias, Eduardo Armond Cortes de Araújo, Edivaldo Soares de Melo, Cleber Carvalho dos Santos, Osmar Rodrigues Jeber Gusmão, Dalmir José Fernandes e Maurílio Brasil (Presidentes, representante e advogados do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada de Minas Gerais; do Sindicato dos Empregados em Empresas de Refeições Coletivas de MG; da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Imobiliário do Estado de Minas Gerais; e do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Produção, Organização e Projetos de Eventos no Estado de Minas Gerais); Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Locação em Geral no Estado de Minas Gerais - não nominado na ata - e o seu advogado, Felipe Martins Ribeiro Pires; Rosane Maria Cordeiro e Luciano Ricardo de Magalhães Pereira (Coordenadora e advogado do Sindicato dos E E E de P. de D S De Informática S Est MG); Luís Cláudio Vieira Araújo, Agnete Campos Pereira e Vanessa Pereira de Oliveira Sampaio (Presidente e advogadas do Sindicato dos Empregados em Empresas de Asseio, Conservação e Limpeza Urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte SINDI-ASSEIO – RMBH); Karina Coutinho Lopes, Lilian Maia de Figueiredo Simões, Humberto Moraes Pinheiro, Mona Hamad Leoncio, Maurício de Sousa Pessoa e André Schmidt de Brito (Procuradoras e procuradores da Vale S/A); e Jaqueline Pereira Salviano (Secretária de Audiência, que redigiu a ata).
No acordo restou reconhecida a responsabilidade da Vale, independente de questionamentos sobre a conduta do trabalhador individualmente considerado, e se fixou uma indenização individual por dano moral no importe de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) para cônjuge ou companheiro (a), pai, mãe e filhos, incluindo menor sob guarda, e de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para irmãos, além de um seguro adicional por acidente de trabalho, no importe de R$200.000,00 (duzentos mil reais), a serem pagos a cônjuge ou companheiro (a), pai, mãe e filhos, incluindo menor sob guarda, individualmente. Isso, sem mencionar, a indenização por dano material, também ajustada, no valor mínimo de R$800.000,00.
Também consta do acordo que:
“As partes pactuam, ainda, as seguintes condições:
I) Ficam garantidas as condições ora pactuadas para os familiares das vítimas, que tenham firmado acordo individual homologado em Juízo, devendo para tanto fazer a adesão ao presente acordo, para percepção da complementação.
II) A Vale S.A pagará, ainda, indenização por danos morais coletivos, no importe de R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), vencível no dia 06/08/2019, mediante depósito judicial, sob pena de multa de 50% em caso de descumprimento, cuja destinação será definida por comitê composto por Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União, assegurando-se a participação das famílias através de representante da Comissão/Associação das Famílias atingidas a ser indicado ao comitê, caso o façam.
III) A ré garantirá aos trabalhadores próprios e terceirizados, que estavam lotados na Mina do Feijão no dia do rompimento da barragem BI, estabilidade no emprego pelo período de três anos contados a partir de 25/01 /2019, com possibilidade de conversão em pecúnia, por iniciativa de qualquer das partes, utilizando-se a base de cálculo da indenização por danos materiais;
IV) A ré garantirá aos trabalhadores sobreviventes, assim considerados os empregados próprios e terceirizados que estavam trabalhando na Mina do Feijão no momento do rompimento da barragem BI, estabilidade no emprego pelo período de três anos contados a partir de 25/01/2019, com possibilidade de conversão em pecúnia, por iniciativa de qualquer das partes, utilizando-se a base de cálculo da indenização por danos materiais”.
Esses parâmetros, como se pode ver, ao contrário do que muitas vezes, infelizmente, acaba ocorrendo, não expressam uma ofensa à condição humana. E foram fatores decisivos para isso a desvinculação do valor do salário de cada trabalhador acidentado e o afastamento da consideração de ser o trabalhador empregado direto ou terceirizado da grande empresa, beneficiária dos serviços.
Apesar de toda dor que atingiu a milhares de pessoas e, porque não dizer, a toda a sociedade brasileira, restou, do acordo formulado, uma sensação de realização de justiça e não se chegaria a esse resultado com os parâmetros estabelecidos pela Lei da “reforma” trabalhista quanto à vinculação da indenização ao valor do salário do trabalhador e a limitação do valor da indenização a 50 salários (arts. 223-G, § 1º, inciso IV, da CLT).
O acordo, inclusive, reconhece a repercussão social da tragédia, buscado medidas para inibição de danos futuros. Além disso, não deixa em desamparo os trabalhadores sobreviventes, incluindo terceirizados.
Em termos de prevenção de eventos futuros, por certo, muito precisa ser feito e um questionamento jurídico e político necessário diz respeito ao quanto as “novas” modalidades de vínculos trabalhistas precários, defendidos como fórmulas mágicas para alavancar a economia, contribuem para os acidentes, como destacado em outro texto:
“No aspecto da prevenção, é essencial admitir o que já está refletido em inúmeras estatísticas, no sentido de que a terceirização e as demais formas precárias de contratação pioram as condições de trabalho e multiplicam o número de acidentes, sendo esta, por si, diante do grande dano social e humano gerado, razão mais do que suficiente para rejeitar, juridicamente, a terceirização e a precarização, que, retiradas as máscaras da suposta eficiência produtiva, não passam de estratégias empresariais para eliminar o poder de negociação dos trabalhadores, reduzir custos da produção e aumentar as margens de lucro. Com a terceirização, grandes empresas tentam transferir para outras, com menor potencial econômico e quase nenhuma estrutura administrativa, vez que atuam, na maior parte das vezes, como meras agenciadoras de mão de obra, toda a responsabilidade e os riscos específicos do processo produtivo, procurando ficar apenas com o proveito (limpo) do trabalho.”[i]
Ademais, como também destacado no mesmo texto, cumpre verificar que já convivemos, no Brasil, com uma intensa precarização e uma realidade trágica em termos da acidentes do Trabalho:
“Há uma enorme tragédia cotidiana nas relações de trabalho no Brasil. O acidente de trabalho da Vale em Brumadinho (que, para muitos, é bem mais que um acidente) é a expressão nítida dessa realidade. Trata-se de “uma espécie de evento concentrado e acelerado da mesma tragédia que, de modo espalhado e a conta-gotas, acomete a milhares de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil ao longo do ano”.
Registre-se que só no primeiro trimestre de 2018, ocorreram no país 184.519 acidentes de trabalho (isso sem mencionar os milhares que, sabidamente, não são notificados), cujos resultados mais comuns estão cortes, lacerações, fraturas, contusões, esmagamentos e amputações, além da morte de 653 trabalhadores e trabalhadoras. Em decorrência desses acidentes, considerando apenas o período em questão, qual seja, o primeiro trimestre de 2018, estimava-se que os custos para a Previdência Social ultrapassariam a cifra de R$ 1 bilhão, com auxílios-doença, aposentadorias por invalidez, pensões por morte e auxílios-acidente.”
Muito ainda precisa ser feito, portanto. Mesmo no caso em questão, as repercussões na esfera penal da conduta da empresa ainda estão por ser analisadas. E cabe verificar também se igual postura será tomada pelas instituições e a empresa envolvida nos casos que não atingem a grande mídia e que se reproduzem nos denominados "rincões" do país.
De todo modo, quero crer que se havia algum risco de que a tragédia da Vale S/A em Brumadinho pudesse ser rapidamente esquecida e, assim, não produzisse quaisquer modificações jurídicas relevantes, com o acordo entabulado esse risco resta completamente dizimado.
A compreensão jurídica em torno da proteção da saúde no trabalho e da responsabilidade da empresa por todos aqueles que realizam o seu empreendimento, embora tenha tido que passar por duríssimo aprendizado, foi conduzida a um novo patamar, mais condizente com a condição humana.
A lições apreendidas, refletidas na ata de audiência referida, não apagam, por certo, a tristeza, a dor e as perdas experimentadas, mas, ao menos, constituíram o instrumento concreto e decisivo para que vidas sejam salvas. Afinal, definitivamente, o desrespeito às normas de proteção ao meio ambiente de trabalho deixa de ser um bom negócio.
São Paulo, 18 de julho de 2019
(*) https://www.jorgesoutomaior.com/blog/solidariedade-e-respeito-as-vitimas-da-vale-em-brumadinho
https://www.jorgesoutomaior.com/blog/as-duras-licoes-juridicas-que-se-devem-extrair-do-maior-acidente-do-trabalho-da-historia-do-brasil-o-da-vale-sa-em-brumadinho
[i]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/as-duras-licoes-juridicas-que-se-devem-extrair-do-maior-acidente-do-trabalho-da-historia-do-brasil-o-da-vale-sa-em-brumadinho