No dia 14 de dezembro de 2023, apreciando a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 20, o STF fixou um limite de 18 (dezoito) meses, para que o Congresso Nacional edite uma lei regulando o direito à licença-paternidade previsto no inciso XIX do art. 7º da CF, asseverando que o prazo de 05 (cinco) dias, estabelecido no § 1º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), é manifestamente insuficiente e não reflete a evolução dos papéis desempenhados por homens e mulheres na família e na sociedade.
Considerado o tempo de 30 (trinta) anos já transcorridos sem a correspondente regulação, o prazo de 18 (dezoito) meses é bastante excessivo, sobretudo, quando a própria decisão exarada anuncia os pressupostos que devem ser adotados, os quais não dão margem a digressões quanto ao necessário efeito da paridade entre a licença-paternidade e a licença à gestante (inciso XVIII do art. 7º da CF).
O prazo menos ainda se justifica se visualizarmos que a disparidade jurídica em questão vem de um período bem mais distante.
Senão vejamos.
O noticiário midiático costuma dizer que a licença à gestante, ou licença-maternidade, de 84 (oitenta e quatro) dias, foi implementada pela CLT, em 1943.
Na verdade, do ponto de vista legal, a licença à gestante, ainda não com este nome, passou a ser um direito das trabalhadoras, em 1932, com a edição do Decreto n. 21.417-A/32.
Este dispositivo previa, de fato, uma proibição de trabalho para a mulher no horário noturno e em várias atividades e locais, assim como, no período “de quatro semanas, antes do parto, e quatro semanas depois”, podendo ser aumentado para 6 semanas, antes e depois do parto, mediante atestado médico. Durante este afastamento compulsório do trabalho, a empregada receberia metade do valor da média de seus salários dos últimos 6 meses, importância que seria paga por um Instituto de Seguro Social e, na ausência deste, pelo empregador.
Em 1943, com a edição da CLT, esta proibição foi estendida para 6 semanas, antes e depois do parto, também com a possibilidade de prorrogação, para 8 semanas, respectivamente, mediante atestado médico (art. 392). Na previsão da CLT (art. 393), o pagamento do salário passou a ser “integral”, considerando a média dos últimos 6 meses, e seria efetuado pelo empregador, sem prejuízo do eventual recebimento de benefício instituído pela Previdência Social.
Em ambos os documentos (o de 1932 e o de 1943) já se estabelecia a impossibilidade de dispensa da empregada, desde o momento em que se encontrava em estado de gravidez.
Apenas em 1967, por previsão do Decreto n. 229, de 28 de fevereiro, o período de afastamento da empregada grávida foi alterado para 4 semanas antes e 8 semanas depois do parto, totalizando os tais 84 dias, sempre referidos no noticiário.
O pagamento do salário integral, considerando a média dos últimos 6 meses, continuou sendo pago pelo empregador.
Somente em 1976, por determinação do Decreto 77.077, de 24 de janeiro, o salário-maternidade se integrou ao rol dos benefícios previdenciários, prevendo tal decreto uma contribuição empresarial específica para o respectivo custeio (0,3% da folha do salário-de-contribuição) – art. 128, VI, “d”, conferindo-se a possibilidade de o empregador descontar o valor líquido pago à trabalhadora do montante mensal das contribuições devidas à Previdência (art. 142, § 6º).
A Constituição Federal de 1988, no inciso XVIII do art. 7º, ampliou, enfim, o prazo de afastamento do trabalho da empregada gestante (84 dias), para 120 dias.
A regulamentação infraconstitucional deste direito veio com a Lei n. 8.213/91, que tratava dos Planos de Benefícios da Previdência Social. A Lei 8.213/91 assegurou o salário-maternidade para as “seguradas empregada, trabalhadora avulsa e empregada doméstica” (inciso VI, art. 26). E, de fato, o que a lei estabeleceu foi um benefício com início 28 dias antes do parto, até 92 dias depois. Somente em 1994, com a edição da Lei n. 8.861, é que o período em questão passou a prever uma variação quanto ao início e término do prazo de 120 dias, respeitado o marco do 28º dia antes do parto. Esta previsão foi reafirmada pela Lei n. 9876, de 26 de novembro de 1999 e, finalmente, pela Lei n. 10.770/03, atualmente em vigor.
2. A licença-paternidade
A licença-parternidade foi originariamente referida na Constituição Federal de 1988, no inciso XIX do art. 7º, nos seguintes termos: “licença-paternidade, nos termos fixados em lei”.
No mesmo documento, mais precisamente no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi estabelecido que “Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias” (§1º do art. 10 do ADCT).
Ocorre que até hoje uma lei a respeito não foi editada.
3. Os obstáculos econômicos e culturais à regulação
Não se levou adiante a tarefa de se legislar sobre o assunto muito por conta do lobby empresarial, que desde sempre busca conter os avanços protetivos da legislação trabalho e, nas últimas décadas, tem também se mobilizado para reduzir as conquistas históricas da classe trabalhadora.
Mas há outros elementos econômicos/institucionais e culturais em jogo, talvez ainda mais relevantes.
A década de 90 foi marcada pela consagração dos ideários neoliberais nas relações sociais e econômicas brasileiras. Preconizava-se a redução do Estado, ou, mais propriamente, o direcionamento das estruturas de Estado para atender os interesses dos grandes empreendimentos privados (notadamente, estrangeiros). Por este olhar, a criação de mais um benefício previdenciário seria completamente inoportuna, principalmente porque uma das principais pautas da política neoliberal era a privatização da Previdência Social, sendo, portanto, incompatível pensar em mais benefícios e mesmo em aumento das fontes de custeio.
Com Isto, não apenas se estabeleceu uma trava à regulação da licença-paternidade, como também se impulsionou a tese de que esta licença não seria propriamente um benefício previdenciário e sim um direito trabalhista custeado diretamente pelo empregador, sendo certo que até este limite o setor empresarial concordaria em suportar.
Neste contexto, uma eventual ampliação do prazo da licença-paternidade estava fora de cogitação, até porque, com a natureza jurídica fixada, implicaria maior custo direto para os empregadores.
E, como benefício previdenciário, o efeito seria a transferência do custo para a sociedade em geral.
É neste último ponto que reside a questão cultural que também tem impedido, até aqui, o advento da regulação, pois, para chegar a este resultado, se teria que, enfim, assumir que não se trata apenas de um direito subjetivo do trabalhador que se torna pai e sim do estabelecimento das condições necessárias para o cumprimento de uma obrigação familiar concernente aos cuidados da criança, conforme, inclusive, se encontra fixado na própria Constituição Federal (art. 227).
Ocorre que os vezos de uma sociedade ainda marcadamente patriarcal e machista impedem que se conceba que a obrigação de cuidados deva ser partilhada, no patamar de igualdade, por homens e mulheres, no caso, pelo pai e pela mãe.
Os 35 anos de omissão do legislador só reforçam a completa despreocupação da maioria dos homens nos espaços de poder e mesmo nas organizações sindicais com relação ao tema, pois regular este direito, na perspectiva de fixar uma paridade entre homens e mulheres quanto à obrigação de cuidados, significa abalar a estrutura patriarcal e individualista.
4. A regulação necessária
Trinta e cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 20, apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), uma categoria formada majoritariamente por mulheres, o STF resolveu, enfim, reconhecer que há uma inconstitucionalidade por omissão do legislador e conferiu o prazo de 18 (dezoito) meses para que o Congresso Nacional promova a regulação.
A decisão do STF, embora tenha reconhecido a omissão e vislumbrado a necessidade de se estabelecer uma definição para o caso, carrega consigo um sério problema que o de não assumir a gravidade da situação e da urgência de se chegar à solução. Ora, segundo o STF ainda será necessário suportar um ano e meio de omissão, antes de se corrigirem os rumos dessa história. Cabe lembrar que a “reforma” trabalhista, que alterou mais de 200 dispositivos da CLT, foi promovida em cerca de 4 (quatro) meses de efetiva de tramitação. Assim, 18 (dezoito) meses, para regular um único objeto, que já está com 35 anos de atraso, equivale a uma atitude de quem, efetivamente, não quer resolver o problema.
E em qual solução se pode chegar, considerado todo este contexto?
Bom, isto vai depender muito do engajamento social que se conseguir atingir. A mobilização social será essencial para que se promova uma mudança que possa, efetivamente, abalar as estruturas arcaicas de nossa estruturação sociocultural.
Concretamente, só se conseguirá avançar na questão com a integração da licença-paternidade ao rol dos benefícios previdenciários, com igualação dos prazos, condições e responsabilidades da licença à gestante, até porque, conforme nos ensinam os saberes ancestrais africanos, dos quais devemos nos alimentar, cabe a toda a sociedade essa tarefa de cuidados com as crianças. Como dita este saber, “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”.
Uma regulação que meramente aumente o prazo, por exemplo, de 5 para 10, 15 ou 20 dias, mantendo-se o custeio exclusivo do empregador, servirá apenas para reafirmar o patriarcado e reforçar os elementos de discriminação da trabalhadora no mercado de trabalho.
Vale destacar que a fixação dos direitos da estabilidade no emprego desde a concepção até 5 meses após o parto e do salário-maternidade, frutos da definição institucionalizada em torno do direcionamento da obrigação de cuidados às mulheres, não representaram, de fato, uma forma de ascensão social para as mulheres trabalhadoras, até porque estas continuam sendo discriminadas no mercado de trabalho e tais direitos, muitas vezes, acabam servindo como fundamento para a discriminação. Vide, a propósito, reportagem de Luciana Lima, na qual se aponta que mais da metade das empregadas (56,4%) foram dispensadas ou “conhece outra mulher que foi desligada” após retornarem da licença-maternidade (Disponível em: 56% das mulheres foram demitidas ou conhecem quem foi desligada após licença-maternidade | Exame).
Daí porque uma paridade nos prazos, valores e condições entre a licença à gestante e a licença-paternidade se apresenta como dado relevante também para coibir a discriminação da mulher no mundo do trabalho; e a fixação desses direitos com benefícios previdenciários resulta na assunção de que o acolhimento das crianças é, efetivamente, uma responsabilidade da sociedade com um todo, sendo a partilha do custeio respectivo apenas uma pequena parte do cumprimento dessa obrigação.
São Paulo, 29 de janeiro de 2024.