Um grande mérito que não se pode negar à decisão do Ministro Gilmar Mendes foi o de ter afirmado, sem rodeios, que a objeção à aplicação do IPCA-E como índice de correção monetária nos créditos trabalhistas não é jurídica, mas econômica.
Segundo demonstrado na decisão, uma dívida de R$ 120.262,74, de março de 2015, atualizada pela TR, em março de 2020, chegaria ao montante de R$ 125.499,90, enquanto que pela aplicação do IPCA-E esse valor seria de R$ 155.673,42.
Houve grande reação à decisão porque ela, literalmente aplicada, geraria a paralisação de praticamente todos os processos que tramitam na Justiça do Trabalho. Difundiu-se, inclusive, uma mobilização entre juízes do trabalho no sentido de não acatar o comando, sem explicitar, no entanto, essa posição por meio da “saída” jurídica de uma interpretação restritiva da decisão.
Diante desse quadro, que, de certo modo, enfraquecia a autoridade da posição assumida pelo Ministro, outra decisão, de cunho limitador, foi proferida por este no dia 02 de julho, no bojo do agravo regimental interposto pela Procuradoria-Geral da República.
A delimitação, elaborada para tentar evitar esse efeito drástico da suspensão de todos os processos, curiosamente, tem sido alvo de uma interpretação ampliativa que produz o entendimento de que restariam suspensos os processos nos quais a aplicação dos índices fosse controversa, sem qualquer outra consideração.
Essa interpretação, primeiro, não muda muita coisa com relação à situação anterior porque a discussão em torno do índice de correção monetária é ínsita aos processos submetidos a julgamento; e, segundo, acaba fazendo com que não sejam atingidos pela suspensão apenas os processos em que for aplicada a TR e o reclamante, para não ver o processo suspenso, concorde com a decisão.
Com isso, se teria engendrado uma decisão liminar que fixaria um direcionamento vinculante aos demais órgãos julgadores quanto ao mérito da questão, vez que, sendo recusada a aplicação da TR, se teria como efeito a suspensão do processo. Ou seja, se a decisão for no sentido de aplicar a TR o processo estaria livre para prosseguir e isto, claro, se também o reclamante concordar com a decisão. Do contrário, juízes e reclamantes seriam punidos com a suspensão do processo.
Por isso que, nos moldes desse entendimento, a decisão em questão teria a configuração de “liminar vinculante com efeito punitivo”, o que, por certo, não encontra validade na ordem jurídica.
Esse efeito, igualmente, deve ser afastado.
Na busca desse sentido, é importante reconhecer que a decisão em questão deixa claro que “a medida cautelar deferida na decisão agravada não impede o regular andamento de processos judiciais, tampouco a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial no que diz respeito à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção”.
Como se vê, restou expresso que a medida cautelar não impede a tramitação processual e que, mantido o prosseguimento com relação às parcelas incontroversas, a suspensão em questão só se daria com relação à parcela controvertida e não quanto à definição jurídica a respeito do índice a aplicar.
Do contrário, apenas os processos em que se declarasse a aplicação da TR (tratado como índice incontroverso) poderiam ter o regular andamento garantido, e, assim, se teria engendrado uma fórmula para imposição da aplicação da TR, fazendo com que o conteúdo meritório da decisão liminar alcançasse força superior à própria Súmula Vinculante que, de todo modo, ainda passa pelo crivo da pertinência ao caso concreto. Certamente, não foi essa, nem poderia ter sido, a intenção do Ministro.
A única forma de se aliar a previsão contida na liminar tendente a garantir o “regular andamento dos processos judiciais” com a não incidência imediata do IPCA-E é a compreensão de que a suspensão determinada diz respeito unicamente à realização de atos que promovam a liberação da quantia representada pela diferença entre os índices de correção em questão (TR e IPCA-E).
Aliás, como também dito expressamente na decisão:
“A controvérsia sobre eventuais valores compreendidos no resultado da diferença entre a aplicação da TR e do IPCA-E (parcela controvertida) é que deverá aguardar o pronunciamento final da Corte quando do julgamento de mérito desta ADC. “
Foi esta, ademais, a compreensão expressa na seguinte Ementa exarada no âmbito da 3ª Turma do Tribunal do Trabalho da 15ª Região:
“EMENTA: Sobre o teor da liminar concedida na ADC 58, esclareceu o Sr. Ministro Gilmar Mendes, que é a “controvérsia sobre eventuais valores compreendidos no resultado da diferença entre a aplicação da TR e do IPCA-E (parcela controvertida) que “deverá aguardar o pronunciamento final da Corte quando do julgamento de mérito desta ADC“. Deixou claro, também, que a liminar não impede o regular andamento dos processos. Considerando esses pressupostos e o fato de que a maior parte dos processos em julgamento no segundo grau trazem essa discussão explicitamente, a única solução possível para atender o comando do Ministro sem paralisar a Justiça do Trabalho, sem interferir na independência jurisdicional e sem conferir ao entendimento de mérito expresso na liminar, em favor da aplicação da TR, uma autoridade superior à da própria Súmula Vinculante, contrariando, inclusive, o quanto já decidido em deliberação plenária do STF, é a de garantir aos órgãos julgadores a possibilidade, caso assim entendam devido, de, seguindo o entendimento do STF expressão nas ADIs 4.457 e 4.425, declarar o IPC-E como índice de correção monetária no caso específico, explicitando, no entanto, que a diferença entre a aplicação deste índice e a TR, enquanto mantida a liminar proferida na ADC 58, não deverá, no juízo de execução, ser alvo de atos judiciais tendentes à liberação do respectivo valor ao exequente.” (Processo TRT/15ª REGIÃO nº 0012336-05.2017.5.15.0032 - 6ª Câmara - 3 ª Turma, Relator Jorge Luiz Souto Maior)
Não está afastada, desse modo, a apreciação meritória a respeito do tema em questão, cujo conteúdo, ademais, como todos os demais atos jurisdicionais, está, inequivocamente, vinculado ao princípio do livre convencimento motivado. Está assegurada a possibilidade de se deliberar sobre o índice de correção monetária a ser aplicado, a partir dos postulados jurídicos pertinentes ao tema, sem a objeção da necessidade de suspensão do processo, bastando que se liberem valores observando-se a correção monetária realizada pela TR, de maneira que a diferença de montante obtida pela aplicação do IPCA-E aguarde decisão do final do STF vez que, vale repetir, o “regular andamento dos processos” foi mantido nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Ministro Gilmar Mendes a respeito de sua decisão liminar.
E cumpre acrescentar, conforme se apreende da própria decisão do Ministro Gilmar Mendes, que os processos nos quais a matéria está abrangida pela coisa julgada não são atingidos pela presente temática, assim como também se dá com relação às situações fáticas e jurídicas consolidadas no período anterior à vigência da Lei n. 13.467/17.
Para evitar a paralisação generalizada da Justiça do Trabalho, não se faz necessário, portanto, encontrar fórmulas processuais anômalas, buscando postergar a apreciação da matéria, até porque essa atuação representa uma negativa de prestação jurisdicional, não possui respaldo jurídico e gera uma falsa impressão de solução do problema.
Ora, quando, por exemplo, o processo já está no segundo grau de jurisdição e o índice de correção é tema recursal específico, não apreciar a questão, remetendo-a ao primeiro grau, que, inclusive, já a apreciou, representa, ao mesmo tempo, negação da prestação, além de gerar falsa expectativa de solução, na medida em que o juiz de primeiro grau, primeiro, seria submetido ao mesmo dilema e, segundo, se o ultrapassar e proferir decisão a respeito, desta decisão caberia novo recurso, retornando a questão, novamente, ao segundo grau.
O regular andamento dos processos, portanto, autoriza a definição, a partir do livre convencimento motivado, do índice de correção monetária a ser aplicado no caso concreto, inclusive o IPCA-E, restando suspensos, unicamente, os atos judiciais tendentes à liberação da diferença de valor pertinente aos dois índices, já que quanto “à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção” o prosseguimento está garantido.
O grande problema é que mesmo com essa delimitação o que se tem como resultado concreto é a subtração (ainda que provisória) de uma enorme quantia da classe trabalhadora, para, mais uma vez, servir ao financiamento de crise econômica.
Mantém-se, pois, a exigência de que o plenário do Supremo Tribunal Federal aprecie com urgência a questão, de modo a fazer justiça às trabalhadoras e trabalhadores brasileiros e a restaurar a autoridade de suas decisões que reconhecem a ineficácia da TR como índice de correção monetária inclusive para a atualização de precatórios, que, como regra, não constituem dívida alimentar, com se dá, com os direitos trabalhistas.
São Paulo, 07 de julho de 2020.