Em artigo recém publicado[i], disse que Drummond não foi convidado para a grandiosa e bela festa de abertura das Olimpíadas. Um amigo me contestou, lembrando que Drummond esteve presente com o trecho da poesia “A Flor e a Náusea”, recitado, em português, pela atriz Fernanda Montenegro, e, em inglês, pela não menos competente atriz britânica Judi Dench.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio
O trecho foi utilizado no momento em que se pretendeu transmitir uma mensagem ecológica ao planeta, convidando os atletas presentes a, de forma simbólica, plantarem uma árvore para a constituição de uma “floresta”, que representaria o legado do evento.
Ocorre que essa poesia de Drummond pode ser tudo, menos uma mensagem ecológica no sentido proposto, qual seja, um convite para que as pessoas plantem árvores para salvar o mundo.
O texto de Drummond, que está integrado a uma obra concluída de 1943 a 1945 (“A rosa do povo”), reflete a melancolia do autor diante de um regime ditatorial, ao qual muitos literatos, para elaborarem propagandas de uma artificial “identidade nacional”, haviam se integrado e das notícias que chegavam dos horrores da 2ª guerra mundial. Trata-se, isto sim, de uma crítica contundente à sociedade instrumentalizada pela ganância, pelo individualismo, pela insensibilidade e marcada pela injustiça, que teria gerado a supressão da condição humana e, claro, destruído a natureza.
O autor demonstra seu desprezo por aquela perda de valores e expressa todo seu enjoo, sua náusea.
A poesia de Drummond, no entanto, não é niilista, alienada ou banal e, consequentemente, não propõe que os seres humanos devem se voluntariar para plantar árvores e com isso salvarem o Planeta, como sugerido no evento. Drummond, efetivamente, incentiva a ação, mas direcionada a uma luta para mudar os seres humanos e suas relações sociais, buscando alimento para esse engajamento por meio da simbologia de que a natureza, mesmo depois de tanto ser maltratada por seres desumanizados, ainda dá um jeito de se recriar: diferente, debilitada, “feia”, como diz, mas revigorada.
Drummond, melancólico, mas otimista, sugere, então, que as brutalidades humanas não são capazes de aniquilar a humanidade, advertindo que as chances de redenção sempre são dadas. Considera que o fio de humanidade estará presente enquanto, no meio da correria da vida mecanizada, ainda se for capaz de perceber uma flor nascendo nos lugares mais inóspitos, arrasados pela ação humana.
Preconiza que é necessário driblar as diversas formas de aprisionamento, encontrando fissuras para fazer florir a consciência humana, que não brota do amor, mas da indignação diante da indiferença e da injustiça, e com isso manter renovada a esperança da superação do modelo de sociedade capitalista, como forma essencial de recuperação da condição humana.
A flor que ilude a polícia para nascer é a consciência humana que, rompendo a alienação, ressurge para libertar a humanidade.
Em paralelo com a natureza, que apesar de todos os ataques ainda insiste em renascer, como se estivesse condenada a isso, também a humanidade, na visão de Drummond, está condenada a existir, sendo que cada flor que nasce em locais improváveis traz a lembrança de que os seres humanos não estão eternamente presos a uma vida medíocre e que podem, mesmo nas situações mais adversas, ressurgir.
Enfim, bem ao contrário da mensagem que se pretendeu transmitir na festa de abertura das Olimpíadas, não são os seres humanos, perfeitos e magnânimos, que salvam a natureza e, com isso, preservam um modelo de sociedade que é, por si, destruidor da condição humana, e sim a natureza, ao se apresentar no local de onde os seres humanos a expulsaram, ou seja, no meio da cidade, entre os carros, é que pode salvar o humano que ainda existe em cada um de nós, relembrando-nos a antiga lição de que “toda revolução é impossível até que se torna inevitável”.
Cumpre, por isso, ler a poesia por inteiro:
A Flor e a Náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio
Portanto, Drummond não foi mesmo convidado para a festa e, pior, sua fala foi deturpada para, bem ao contrário do que propôs em sua obra, transmitir uma mensagem que aprofunda a alienação, dificultando ainda mais a percepção crítica da realidade.
Não há, portanto, correção a realizar no texto referido. Mas se não houve equívoco quanto a esse aspecto, penitencio-me por, ao falar de alguns exemplos de músicos na formação da MPB brasileira, não ter feito referência a Chiquinha Barbosa, e, ao fazer menção a poesias socialmente engajadas, não lembrar de Patrícia Galvão (Pagu), isso para ficar em apenas dois exemplos.
O que se passou com a obra de Drummond na festa de abertura é uma comprovação do quanto é difícil alterar o sistema interagindo com ele, jogando o seu jogo, afinal o sistema tende a acolher os elementos de sua contestação e os submeter a uma metamorfose para conduzi-los ao plano da aparência, preservando-se inalterada a essência que se situa no modo de produção, na relação de dominação do capital sobre o trabalho.
Veja, por exemplo, o que se dá com a própria Olimpíada, onde fundamentos que se chocam, diretamente, com o regular funcionamento do sistema, a solidariedade, a unidade e a igualdade, são acolhidos e conduzidos ao plano da abstração da construção de um “mundo melhor”, de modo a não permitir que se visualizem as formas de exploração do trabalho embutidas, por exemplo, no material esportivo utilizado nos esportes e nas obras que tornam o evento possível, servindo, inclusive, para aumentar a circulação dessas mesmas mercadorias, fortalecendo o processo de acumulação da riqueza.
Essa é uma realidade complexa, que nos envolve paradoxalmente. Afinal, como reconhecido na poesia de Drummond, também fazemos parte dela e não temos como simplesmente negá-la. Ou seja, mesmo com náusea, não há como se recusar a interagir com a dura realidade, até porque a aparência é concreta e quanto mais se recusa a fazer essa interlocução, mais se fortalecem as armas da alienação.
O necessário é manter-se vigilante para não ser engolido pela lógica simbiótica que anula a percepção do processo histórico dialético que caracteriza a sociedade de classes. Uma lógica que, ademais, naturaliza a desigualdade, fazendo com a interação seja importante também para que se consiga revelar as mazelas do sistema. Como uma flor que rompe no asfalto, é preciso abrir espaços entre as formas da aparência para que a consciência floresça. E, ao mesmo tempo, é preciso impedir que se efetive a apropriação pelo sistema dos elementos que lhe são críticos, ainda mais porque o poder dessa atração é tão grande que tende a tornar esses elementos em símbolos dos “méritos” de uma estrutura social doente, ou em fundamentos para sua apologia.
Por isso, no caso concreto das Olimpíadas, apesar de todos os seus problemas, não é possível fingir que os jogos não existem e não interagir com eles, até porque, como havia dito no texto acima referido, as atletas e os atletas brasileiros, “na sua maioria, replicam a história cotidiana da nossa população. Os abnegados atletas brasileiros, que também chacoalham em trens da Central, lutam contra o abandono, a descrença, a desigualdade, a discriminação, o preconceito e a exploração”.
E não é que os deuses do Olimpo resolveram me ajudar na demonstração desse fundamento e conferiram à Rafaela Silva, mulher, negra, lésbica, moradora de um bairro pobre do Rio de Janeiro (Cidade de Deus), a visibilidade da primeira medalha dourada?
Rafaela Silva, de forma inegável, replica a história de tantas mulheres negras e pobres no Brasil, tendo sofrido toda a carga de uma sociedade machista, branca, elitista e excludente. Antes das Olimpíadas chegou a ser chamada de “macaca” nas redes sociais, conforme dito pela própria Rafaela: “Falaram que judô não era para mim, que lugar de macaco era na jaula, e não na Olimpíada.”
Ter-se-ia, então, uma grande oportunidade para questionar uma sociedade que impõe tantos sofrimentos a milhões de pessoas que se encaixam na mesma posição social que Rafaela.
No entanto, de repente, depois da conquista, Rafaela foi logo integrada ao Brasil e passou a ser chamada de “nossa Rafaela”, de guerreira, ao mesmo tempo em que, também muito rapidamente, começou a ser apresentada como um exemplo de superação, de uma história de sucesso, reforçando o argumento do quanto o esforço individual é suficiente para tirar as pessoas da miséria e fazendo crer, por conseqüência, que não há nenhum problema na estruturação da sociedade, que as dificuldades enfrentadas pelas pessoas mais pobres são unicamente fruto da sua falta de esforço e dedicação.
Desse modo, assim como se fez com o poema de Drummond, a história de sofrimentos de Rafaela Silva, que seria útil para revelar as injustiças sociais, a discriminação, o racismo, a opressão de gênero, a exploração e a exclusão, acabou sendo apropriada para ser transformada em uma arma para abafar as críticas ao sistema, fazendo sobressair o subjetivismo metodológico do esforço pessoal.
Claro que Rafaela Silva é uma guerreira e que seu esforço e sua dedicação são admiráveis, merecendo todos os elogios que se lhe possam dirigir. Mas sua vitória não pode se constituir em uma apologia ao capitalismo ou a alguns elementos culturais brasileiros nas questões de gênero, de raça e de classe. Aliás, é exatamente o extremo valor de sua conquista que demonstra o enorme fosso que se formou historicamente entre as classes sociais na realidade brasileira, assim como desta com a dos países centrais, que exploram o trabalho na periferia do capitalismo. A história de Rafaela Silva é a história das extremas dificuldades que são impostas às mulheres no Brasil, sobretudo, quando são negras e pobres.
Claro que alguém poderia se sentir tentado a acusar essa fala de hipócrita, sensacionalista, utilizando mais uma tática do reacionarismo que é a de desmoralizar o interlocutor.
No entanto, a história de sucesso da Rafaela Silva não é, certamente, a regra da realidade das outras milhões de Silvas, que continuam sendo vítimas de enormes violências.
Ora, na mesma semana em que Rafaela Silva passou, enfim, a ser reconhecida, sendo tratada com honras, inclusive, Bruna Rodrigues Cirino de Amorim, mulher brasileira, negra e trabalhadora terceirizada, teve que ler na defesa processual de uma grande rede de supermercados, onde trabalhou por mais de dois anos realizando a limpeza em uma loja, a seguinte frase:
“Ou seja: não há exageros em afirmar que a ora contestante sequer sabe quem, de fato, é a Sra. Bruna Rodrigues Cirino de Amorim!”[i]
Enfim, que os deuses do Olímpio e as Rafaelas Silvas não se iludam, pois a essência do modelo de sociedade que nos envolve não está na medalha de ouro (e suas honras), mas na forma como Bruna foi explorada e tratada.
São Paulo, 10/08/16.
[i]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Uma Olimpíada na minha vida. In: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/uma-olimpiada-na-minha-vida
[i]. Sala de audiências da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí, dia 04/08/16 - Processo n. 12892.77.2015.5.15.0096.