A grande mídia, a exemplo do que fez ontem "O Estadão", está disseminando a ideia de que os juízes e procuradores do trabalho serão responsáveis pela não aplicação da Lei 13.467/17 e que isso irá certamente promover o caos nas relações materiais e processuais do trabalho. O argumento é de que um movimento de boicote, de espectro revanchista, anima esses “operadores do direito". Esse argumento não é apenas falso, é perverso. Distorce a realidade de que a Lei 13.467 não promove uma simples reforma legislativa. Altera mais de cem artigos da CLT, contendo em si disposições contraditórias, como aquela do art. 611-A quando afirma que a negociação coletiva sobre jornada deve observar os limites constitucionais. Ou quando o 611-B diz que são infensas à negociação coletiva normas de proteção à segurança e saúde do trabalhador, para em seguida afirmar que regras sobre jornada não dizem com segurança ou saúde no ambiente de trabalho.
Estamos diante de um projeto de promoção do caos nas relações de trabalho, em âmbito material e processual, cujo objetivo final parece cada vez mais revelar-se no horizonte como uma expectativa, traduzida pelas vozes que imputam agora aos juízes e procuradores a responsabilidade pelo final já anunciado, de extinção da Justiça do Trabalho.
O mais triste é que a própria magistratura, em certa medida, acaba aceitando essa linha de argumentação, e se apressa em manifestar sua intenção de não aplicar o Direito do Trabalho e aplicar a lei sem qualquer esforço interpretativo, acolhendo a sua lógica intrínseca de precarização, mesmo dizendo que o farão à luz da Constituição, do sistema jurídico trabalhista e das Convenções da OIT.
Trata-se de uma disputa de discurso, que disfarça o que realmente está em jogo.
A 13.467/17, mal redigida, atécnica, contrária à noção de proteção que justifica a existência do Direito e do Processo do Trabalho, não é uma legislação trabalhista. Não está afinada com a razão histórica e jurídica pela qual existe um ramo próprio do direito para cuidar das relações de trabalho. Não está afinada com a missão constitucional de reduzir desigualdades, promover o bem comum, respeitar e assegurar a dignidade humana e o valor social do trabalho. Não encontra espaço no ambiente internacional que reafirma, em todas as normas que edita, a necessidade de progressividade de proteção social, sob pena de autofagia do próprio sistema capitalista de produção.
É preciso ter a coragem de afirmar que os juízes ou procuradores do trabalho que negam integralmente a aplicação dessa excrescência que é a Lei 13.467 o fazem exatamente porque ao assumirem seu mister, fizeram o juramento de cumprir a Constituição. O fazem, porque reconhecem o caráter destrutivo dessa legislação mesquinha, produzida por um setor específico do capital, que está de costas para a realidade das relações sociais no Brasil. O fazem, porque não há como seguir acreditando em uma sociedade menos injusta, menos concentradora de renda, se aceitarmos transformar a legislação trabalhista em um conjunto de regras de proteção ao grande capital. O fazem, porque haverá extrema dificuldade, mesmo da perspectiva estritamente jurídica, na compatibilização dessas regras com normas que não foram alteradas e que constituem a espinha dorsal da regulação jurídica da relação entre capital e trabalho, tal como os conceitos de relação de emprego, empregado, empregador, subordinação, salário mínimo, tempo à disposição, acesso à justiça, gratuidade, etc.
Esse discurso dos setores econômicos favorecidos pela “reforma”, reproduzido pelo editorial do Estadão, pretende atribuir a responsabilidade pelo desmanche, àqueles que, de forma devida, com responsabilidade e por dever funcionam, resistem. Por isso mesmo, é um discurso perverso.
A impossibilidade de aplicação da lei não decorre da má vontade, do boicote ou de revanchismo dos juízes ou procuradores, mas sim de sua completa incompatibilidade com o estágio atual de desenvolvimento da própria noção de civilidade, de humanidade. Sua não aplicação decorre de todo o retrocesso que a lei estimula, de sua desconexão completa com toda a luta social que permitiu, historicamente, as limitações ao tempo de trabalho e o reconhecimento da necessidade de um adequado acesso à justiça. A lei não será aplicada porque não é trabalhista, nem da perspectiva jurídico-liberal, nem da perspectiva humanista.
Haverá resistência, porque sem ela em breve não teremos sequer Direito do Trabalho e, catapultados de volta para a realidade do século XVIII, teremos que amargar décadas de produção de miséria, até conseguirmos voltar ao estágio atual, cujas conquistas - poucas, diga-se de passagem - constituem condição de possibilidade de uma vida minimamente boa para todos.