Baseado na peça do escocês Cecil Philip Taylor, o filme Um Homem Bom, do diretor brasileiro Vicente Amorin, com roteiro adaptado de John Wrathall (Jodaf Mixer/Arclight: 2008), relata a trajetória de um professor de literatura, John Halder (Mortensen), durante a época do nazismo na Alemanha.
O professor era, por assim dizer, “um homem bom”, honesto, tolerante e bastante crítico ao nazismo. Não era famoso e não tinha muitas possibilidades de ascender na carreira acadêmica, também porque não era filiado ao Partido nazista.
Utilizam a estratégia de dizer a John que Hitler pessoalmente tinha se interessado por sua obra, apresentando-lhe, inclusive, uma avaliação que o Führer teria feito de próprio punho.
John, que era bastante crítico ao nazismo, se sente valorizado e, atraído pela vaidade, cede ao pedido.
O que se verifica na sequência é uma série de fatos que representam um completo desarranjo da vida anteriormente vivida por John, que vai desde a separação da mulher, o abandono da mãe, a desvinculação dos filhos, até o rompimento com um antigo amigo, com quem havia lutado na primeira Guerra. Em paralelo, sua nova vida vai se acertando e sua posição no regime se consolidando.
Mas o mais interessante são os argumentos que John utiliza para se convencer de que estava fazendo a coisa certa e que, no fundo, não estava alterando o seu modo de pensar, apenas adaptando-o à nova realidade, que seria inexorável.
A lembrança desse filme me veio à mente ao pensar sobre o atual contexto político nacional, abalado com a expectativa de saber até que ponto a irracionalidade pode levar uma comunidade inteira. Irracionalidade esta que, aliás, se alimenta de explicações carregadas por tentativas de justificar a posição assumida pelo intérprete.
As manifestações, inclusive, são direcionadas a um público específico cujo pensamento já se conhece e ao qual se pretende agradar.
Para atender a esses objetivos, os defensores do “impeachment” sabem que precisam falar mal do PT, da Dilma e do Lula; trazer os argumentos da moralidade, da luta contra a corrupção e a impunidade; ressaltar a crise econômica, o número de desempregados e o aspecto da intranqüilidade gerada no mercado por uma tal “ingovernabilidade”, explicitando o quanto o impeachment traria de volta a confiabilidade para o investimento; e não esquecer de dizer, claro, que “pedalada fiscal” é um crime administrativo grave que dá ensejo ao impedimento, ainda mais porque pode ser entendido, no contexto em que se deu, como estelionato eleitoral.
Já aos que são contrários ao “impeachment”, para agradar ao seu público determinado, não basta apresentar contraposições aos argumentos acima. Faz-se necessário sair em defesa do governo, dizendo que a tentativa de tirar a Presidenta foi fruto de uma espécie de revanche da direita pelo fato de um operário ter ocupado a Presidência da República e de ainda ter condições de voltar a fazê-lo em 2018; que a reação, incentivada midiaticamente, foi promovida por representantes de uma classe média cansada dos avanços sociais promovidos pelo PT, ou seja, por pessoas que não querem mais conviver, em espaços públicos, aeroportos e universidades públicas e privadas, com as tais “40 milhões de pessoas que foram retiradas da linha da miséria”. O impeachment seria, assim, um golpe da direita contra os avanços promovidos pelo PT.
Até aí se poderia conceber como parte do jogo democrático, mas, em complemento, vem uma espécie de categorização das falas, pinçando-se frases e sentidos “encontrados” nas entrelinhas, para o efeito de posicionar quem se manifesta de um ou de outro lado da contenda.
Esse autêntico policiamento militante não só inibe as possibilidades do debate e o aprofundamento de ideais como também exerce influência prévia no conteúdo das falas e na própria percepção da realidade, pois se alguém aponta alguma inconsistência no argumento dos que são a favor do impeachment logo é chamado de “petralha” e se faz o contrário corre o risco de ser chamado de “reaça” ou de golpista. E, se aponta inconsistências de parte a parte “apanha” de todos os lados ou simplesmente é desprezado.
No contexto dessa dinâmica do desgaste pessoal é que a lembrança do filme se reforça. Afinal, o ser humano, como ser social, é norteado pela lógica do pertencimento e a sensação de acolhida lhe faz bem. Aliás, bem mais que isso, pois a forma “animada” pela qual os debates se estabeleceram incentivou um clima de exaltação, apto à profusão de notoriedades, atraindo a vaidade, que costuma trair a consciência.
Então, percebam: quando esses dilemas invadem os seres humanos, no momento em que se procura uma compreensão da situação presente, já não se está mais no plano dos fatos, da análise crítica descomprometida dos problemas estruturais, da crise política e da econômica, mas no âmbito da contenda pessoal, que muitas vezes se estabelece entre o autor consigo mesmo, com suas contradições, suas convicções e seus atos milimetricamente pensados, gerando, na multiplicidade de manifestações vindas de todos os lados, favorecida pela facilidade dos meios de comunicação, uma espécie de histeria coletiva.
Leva-se para o nível das preocupações pessoais o que seria, em princípio, uma questão estrutural e passa-se a propor compreensões da realidade e soluções dos problemas que satisfazem a anseios individuais, que não raro se ligam ao trauma da relevância da própria existência. Além disso, os seres humanos aproveitam o ensejo para se declararem como “bons”, acusando as estruturas políticas e econômicas por todos os males, isto quando não isentam as estruturas e apontam os adversários políticos como os verdadeiros culpados por seus eventuais desalentos.
O que se procura, portanto, é muito mais uma saída para dilemas psíquicos, ou um conforto para as fragilidades pessoais, do que uma compreensão concreta da realidade.
Como no filme, vale mais conseguir justificar a posição política assumida do que tentar compreender o que está acontecendo, até porque muitas são as “apostas” feitas e as reputações passam a fazer parte do jogo.
Assim, o que seria a defesa de posições dentro da lógica democrática do contraditório passa a ser mero jogo de palavras de ordem, com falas inflamadas, provocando uma espécie de obscurantismo pós-moderno, no qual as versões são mais relevantes que os fatos propriamente ditos.
Claro que as interpretações subjetivas dos fatos sempre existiram e continuarão sendo a tônica da tal “produção do conhecimento”. Mas na situação presente, de uma espécie de crise de identidade, verifica-se um exagero do compromisso consigo mesmo, que inclusive impulsiona a postura de não desagradar aos que se identificam como aliados, retroalimentando as abstrações e a fuga da realidade e até de si mesmo, com explicitação de ideias ou de silêncios eloquentes que em outro contexto não se daria.
Ora, em outro contexto, de menor paixão, seria impossível não reconhecer que derrubar uma Presidenta da República por conta de “pedaladas fiscais” é meramente um subterfúgio para atender a vontade de grupos sociais que vislumbram um interesse próprio com a troca do governante. Por outro lado, seria impossível também não reconhecer que essa troca não tem nada a ver com supostos méritos da atuação social do governo, sendo, aliás, a enunciação dos motivos desse rompimento (e a avaliação dos riscos que gera) o desafio das formulações que buscam compreender o momento político vivido e desse esforço se abdica quando as pautas da emergência e da conveniência batem à porta.
Por certo, não é nada fácil compreender e se posicionar sobre tudo que tem acontecido, mas ao se integrar de forma irrefletida e comprometida no “debate” o desafio já está perdido. No plano da mera disputa entra-se no campo perigoso do “vale-tudo”, admitindo-se excepcionalidades por motivos que, inclusive, não precisam ser revelados e com os quais, no íntimo, não se concorda.
Esse é o processo grave da perda da dignidade e da produção de uma certa “flexibilização” ao respeito próprio e que, paradoxalmente, ao invés de gerar notoriedade e vínculos sólidos de solidariedade acaba provocando uma fama efêmera e alianças por conveniência, fazendo com que o ser humano “bom” se torne um ser humano útil, um elemento facilmente descartável.
Esses vínculos ocasionais se estabelecem a partir de um ponto em comum, rechaçando, pois, as possibilidades de dissidências. As questões orbitais, no entanto, em outros planos são nucleares e costumam atrair quem com elas assente, ainda que pelo mero silêncio. Realiza-se, então, um processo que pode ser identificado como uma espécie de “arrasta-me para o inferno”, que se dá quando, por exemplo, para se contrapor à superficialidade do argumento da moralidade imagina-se ser possível e necessário abandonar qualquer avaliação crítica em torno das alianças promíscuas feitas pelos governantes, que se dizem de esquerda, com grandes empreiteiras, financeiras e o agronegócio. Ou quando, inversamente, parte-se do argumento da moralização para justificar inconstitucionalidades, aliando-se ao que há de mais imoral.
Além disso, perdendo-se as referências, quando nem mesmo limites para a satisfação dos interesses são identificados e respeitados, acaba-se incentivando o advento da balbúrdia total para evitar que alguma racionalidade seja produzida e possa ser utilizada para dar razão a alguém. Mas aí todos perdem.
A situação, no entanto, é ainda mais complexa que isso, pois a partir dessas digressões se poderia concluir que o melhor mesmo é não se envolver no debate, buscando abrigo entre os que aderiram à postura do “fora todos”, que não é, vale dizer, uma postura alienada, mas resultado da compreensão de que os lados em contenda desviaram-se tanto da realidade e deixaram tão de fora os interesses concretos da classe trabalhadora que alimentar as discussões no nível em que se apresentam acaba fortalecendo as aparências, sendo necessário, pois, atrair outros elementos para as análises.
Mas esse importante senso crítico peca por não se dispor ao diálogo e com isso perder a oportunidade de repercutir para além dos limites dos quadros dos que já estão convencidos, até porque, apesar de todos os problemas de posicionamentos identificados, não é indiferente para a materialidade concreta se o “impeachment” se realiza ou não, sobretudo por conta dos interesses que o impulsionaram e a forma como está sendo conduzido. Desse processo tem resultado, ademais, o depósito de uma enorme sombra sobre a Constituição Federal de 1988, o que representa uma ameaça, sobretudo, à eficácia e até mesmo à sobrevivência dos direitos sociais e trabalhistas consagrados na Constituição.
No nível de tensão social atingido exige-se enfrentar a questão posta do “impeachment”, ainda que se tenha bons argumentos para: demonstrar as falácias dos interesses político-partidários e de ordem pessoal que embasam o debate; dizer que a democracia que se pretende defender sempre foi hostil à classe trabalhadora; esclarecer que o Estado de exceção, pelo qual se nega aplicabilidade concreta aos direitos sociais e trabalhistas, já era uma realidade no Brasil, há muito verificada; e advertir que com ou sem “impeachment” essa situação não será alterada.
De todo modo, como dito, fora de um contexto da revolução proletária, que também é uma abstração que só está posta em mentes intelectualmente privilegiadas, não é indiferente para a classe trabalhadora perder direitos constitucionalmente assegurados, pois os sofrimentos do dia-a-dia, caso tal situação se concretize, só tendem a aumentar.
Então acaba sendo inevitável uma tomada de posição a respeito, correndo-se o risco da formulação de análises um tanto quanto deturpadas pelas vontades pessoais, ainda mais porque no momento de crise, no qual uma nova realidade está sendo construída, não se tem mesmo qualquer parâmetro real acerca do que está por vir. Mas o que virá depende muito de nossa capacidade para produzirmos, neste grave instante, raciocínios honestos e que sirvam ao convencimento da enorme gama da população (talvez a grande maioria) que não se viu identificada nos argumentos expressos nos embates da crise política.
A questão não é singela, por certo, e mais difícil ainda é tentar sair do contexto para propor uma análise na qualidade de mero observador, quando, de fato, estamos, todos, participando do jogo.
O momento de crise, ademais, é também um momento de reconstrução e, consequentemente, de disputa. Não existe, pois, uma certeza a ser descoberta, mas um vasto campo de disputa, na busca da reconstrução de uma nova realidade.
São vários os elementos para a formulação de uma análise crítica da realidade, os quais se tentarão esmiuçar no último artigo dessa trilogia. Essencialmente, é importante rechaçar as visualizações de “demonização” e de “vitimização”, para que se tenha, inclusive, alguma chance de contribuir com as compreensões e as formulações teóricas que estimulam práticas construtivas. Sem o despir de vaidades, sem se assumirem erros, sem se proceder a uma constante reavaliação dos prognósticos, acompanhando a dinâmica dos fatos, restará apenas a via fácil da acusação de que tudo não passou de uma espécie de “conspiração do mal contra o bem”.
Essa persistência com as abstrações que pouco explicam, muito atacam e que buscam apenas atender a interesses determinados por meio de justificativas meramente lógico-formais, gera a perda da credibilidade, dificultando, inclusive, a formulação de resistências aos retrocessos que se enunciam em eventual nova configuração governamental.
De todo modo, penso que (e na realidade torço para isso) existe uma dinâmica social que está sendo desprezada no debate da crise política e que, vingando-se, tem desprezado o debate, tanto que não se tem visto nas ruas, em movimentos espontâneos e de massa, a juventude, a classe trabalhadora e os marginalizados e oprimidos em geral.
Sem minimizar a gravidade do momento em que se verifica o avanço e o aprofundamento da lógica do Estado de exceção, que fragiliza direitos individuais e busca eliminar direitos sociais e trabalhistas, favorecendo, ainda, ao reforço da lógica repressiva, é possível apostar que a mobilização social latente, que está contida por não se sentir amplamente representada na disputa ora instaurada, possa se pronunciar no sentido concreto da luta pela preservação de direitos e também pela superação das desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, ativando-se em diversos setores da vida social. Essa dinâmica pode ser verificada, por exemplo, no número de greves ocorridas no ano passado, nas mobilizações dos secundaristas do Estado de São Paulo, que agora se alastram para outras regiões do país, nas lutas e nos avanços já alcançados nos temas relacionados às cotas raciais e a diversas outras formas de discriminação.
Além de se manter vigilante quanto aos ataques à Constituição, compete dar visibilidade a essas lutas sociais, conferindo a devida importância aos seus protagonistas, até para tornar menos tranquilas as tentativas de retrocessos.
O tema do “impeachment” é importante e devemos continuar tratando dele, mas é necessário perceber que “há vida lá fora”, uma vida intensa, dinâmica e promissora, que está desatrelada da lógica do poder político burocratizado, vida esta que precisa e que vai continuar avançando.
É o tempo de visualizar e compreender essas forças, pois são elas que promoverão, no futuro próximo, as efetivas mudanças necessárias ao menos para a construção de uma democracia real.
É importante reconhecer que todo esse debate de índole pessoal sobre a crise política tendeu a nos transportar para um mundo um tanto quanto distante da realidade e a nos transformar em pessoas pessimistas, velhas e, ao mesmo tempo, reacionárias, vez que o maior sentimento que estimula é o medo: medo de errar; medo de contrariar; medo de ser contrariado; medo de encontrar a verdade; medo de arriscar; medo de avançar; medo de enfrentar e de ser enfrentado e afrontado. O medo, aliás, como já dito, é uma grave forma de terrorismo[1].
É preciso, pois, urgentemente, romper as prisões da argumentação conveniente, calculada e, consequentemente, falseada e reprimida, para abrir espaço à visualização de que esse momento, com todos os seus riscos, pode se constituir em um período de recuperação dos laços de solidariedade, de retomada da consciência de classe, de restauração das utopias e de revitalização de seres humanos honestos e tolerantes, sendo altamente relevante que se assumam esses objetivos como prioritários, já que muitas serão as resistências que advirão pela frente e não é possível, depois de tudo isso, que se mantenha, agora ou em 2018, nos mesmos limites dos presentes debates. Uma superação, com autocrítica responsável, parece inevitável, qualquer que seja o resultado final do “impeachment”.
Trata-se, por certo, de uma realidade bastante complexa, que ainda traz consigo a dificuldade de o intérprete fazer parte do jogo, portando suas preferências e seus interesses. Reconhecer isso, de todo modo, já é um passo altamente relevante para chamar à tona um valor essencial da condição humana, a dignidade, que se vê seriamente ameaçada quando se dispõe a defender uma posição por conveniência ou quando se estrutura o pensamento apenas a partir de uma lógica argumentativa formalmente construída, ao custo da consciência.
Fora dos limites da dignidade, qualquer solução de consenso para a crise política ou mesmo uma eventual vitória, seja em que sentido for, a que se chegue por intermédio do mascaramento da realidade ou como fruto de cessões de princípios, é, de fato, uma derrota, afinal não há remédio para a crise de consciência que desse ajuste resulta e esta última, a crise de consciência, tende a perdurar por anos e, como no dilema de Fausto, pode vir a se apresentar, de vez em quando, para cobrar a conta.
São Paulo, 11 de maio de 2016.
(*) Segundo texto da trilogia iniciada com o texto “A crise e um pouco de otimismo” (http://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-crise-e-um-pouco-de-otimismo)
[1]. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Vencendo-o-terrorismo-do-medo-a-hora-da-politica/4/28133.