Ao tempo em que se deu a greve de estudantes da USP, vivenciaram-se a greve dos trabalhadores e trabalhadoras terceirizados no Aeroporto Internacional de Guarulhos e a greve dos metroviários de São Paulo.
Embora diversas nos objetivos, há um ponto comum entre essas greves que serve para denunciar o “déficit” democrático que ainda se preserva em inúmeras relações sociais no país: com diferentes formas e impactos, de todas resultaram atos de represália aos grevistas.
Após o encerramento da greve do Metrô, 08 (oito) metroviários, quase todos diretores sindicais e membros da CIPA, sendo um deles o vice-presidente do sindicato, foram despedidos, sob o argumento de terem tido atuação em mobilização da categoria que esteve diretamente ligada à mesma motivação da greve: a luta contra a privatização dos transportes e do saneamento (https://esquerdadiario.com.br/Abaixo-as-demissoes-dos-que-lutam-contra-a-privatizacao-do-Metro).
Na Universidade de São Paulo, a Pró-Reitoria de Graduação divulgou uma Circular cujo efeito será o de causar enormes danos aos estudantes e às estudantes, mesmo àqueles e àquelas que não tenham aderido à greve, o que se constitui uma fórmula para punir todo tipo de mobilização.
Diante deste quadro de replicação de represálias ao exercício do direito de greve, cabe reafirmar alguns preceitos que foram expressos em texto a respeito da greve na USP, publicado no último 09 de outubro (https://www.instagram.com/p/CyOlJKquc41/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==) , no sentido de que:
1) uma greve só se inicia por insatisfação daqueles que são atingidos por uma realidade construída por quem tem o poder de definir os rumos de uma dada relação jurídica sem se valor do Estado ou mesmo da greve;
2) quem decide pela greve e quem é alvo dela são igualmente partes do conflito;
3) as responsabilidades pelos atos de greve são tanto de quem está reivindicando, quanto de quem quer manter a realidade inalterada;
4) greve é conflito e não há conflito sem, ao menos, dois interesses e posturas antagônicas;
5) mas a greve não é o conflito em si, é o conflito que se estabelece para a solução do conflito originário;
6) dentro desse contexto, são plenamente justificáveis os dos grevistas voltados a preservar a utilidade da própria greve, quando ameaçada por atos de resistência e combate à greve;
7) se fosse para punir os atos dos grevistas, haver-se-ia, também, de punir todos que cometeram violências contra os grevistas, não só pela insistência de adentrar os locais em greve para continuar sua “vida normal”, como também pelas manifestações em notas, artigos e entrevistas atingindo a honra e a moral dos grevistas;
8) na dinâmica da greve, o conflito só se intensificou pela demora na disposição dos alvos das reivindicações em abrir negociação e de atender, ainda que em parte, as demandas postas pelo movimento grevista;
9) só é possível superar uma greve com a eliminação plena do conflito;
10) querer responsabilizar grevistas – e só eles – por atos de greve é uma atitude que nega o processo dialético de construção de uma nova realidade, servindo apenas para retroalimentar o conflito;
11) o compromisso de não represália se apresenta, pois, como a essência de uma solução pacífica e efetiva do conflito de greve, até porque o direito não abarca nenhum tipo de ato que, mesmo sob o argumento da imperatividade administrativa, que possa ser entendido como mera expressão de um sentimento de vingança.
Cabe acrescentar que a solução de uma greve pressupõe, necessariamente, a definição acerca dos efeitos decorrentes da greve. Mas esta definição, obviamente, não está submetida à vontade unilateral de uma das partes, sobretudo, daquela que, ao exercer, de forma reiterada, seu poder de decidir, sem se ater aos interesses contrários, deu, inclusive, ensejo à própria greve.
Quando a parte que, por reiteração de práticas de negação do interesse alheio, deu motivo à greve resolve definir sozinha os efeitos do período da greve, o que se efetiva, na verdade, é a retomada da situação havida antes da greve, o que, de certo modo, renova o conflito e reativa a motivação da greve, ainda mais quando visa “punir” os seus interlocutores, tomados por “adversários”.
Não é à toa, portanto, que a lei de greve dispõe, expressamente, que as relações obrigacionais decorrentes do período de greve serão definidas ou de comum acordo entre as partes envolvidas ou por um terceiro alheio ao conflito. É o que prevê o artigo 7º da Lei n. 7.783/89:
“Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.
Desse modo, não tem nenhum valor jurídico a Circular do Gabinete da Pró-Reitoria de Graduação da USP, RG-005/2023, divulgada em 24 de outubro de 2023, pela qual o ente administrativo da Universidade busca definir, de forma unilateral, quais serão os efeitos do período de greve.
E é ainda pior a situação, quando se constata que o efeito da aplicação dos parâmetros fixados em referida Circular serão prejuízos e mesmo a punição dos estudantes (mesmo daqueles que, eventualmente, não tenho aderido, de forma explícita, à greve).
Ora, os efeitos imediatos da Circular são: a) um descompromisso com a reposição das aulas e seus conteúdos; b) o aumento das possibilidades da reprovação por faltas; e c) a maior dificuldade de preencher as condições para manter bolsas de permanência.
Em vez de um “incentivo” para que se ponha fim à greve, a Circular em questão apresenta-se, isto sim, como uma ofensa ao direito de greve e, contraditoriamente, acaba servindo de estímulo à própria greve, como forma de se resistir ao ataque sofrido.
Fato é que, tanto pela forma, quanto pelo conteúdo que alimenta uma lógica persecutória, impõe-se a imediata revogação da referida Circular, inclusive para que não se identifique a postura da Universidade Pública, cujo papel institucional é o da produção de um conhecimento voltado à construção de uma sociedade justa e igualitária, baseando-se na defesa intransigente dos Direitos Humanos e da ordem democrática, à de entidades que interagem com seus interlocutores tomando-os por opositores e inspiradas por um antagonismo típico de uma luta de classes e que não hesitam em usar o seu poder, com desprezo da ordem jurídica, para fazer valer os seus interesses econômicos.
Em suma, em um contexto de crise democrática, cabe à Universidade Pública, sobretudo em suas experiências concretas, produzir práticas e saberes que contribuam para a superação das diversas formas de opressão e não reforçar e, de certo modo, data a sua autoridade acadêmica, “legitimá-las”.
São Paulo, 30 de outubro de 2023.