Vários textos publicados, com o objetivo de fazer um balanço do que ocorreu nos dois anos do governo Bolsonaro, já trouxeram muitos elementos aptos a demonstrar os erros das iniciativas (ou omissões) do governo no que tange às questões econômicas, sociais, socioambientais, políticas e humanas.
Uma vez que essa importante tarefa já foi devida e eficientemente cumprida, quero crer que se abre, então, a oportunidade – e é isso que proponho no presente texto – de avançar para uma investigação acerca dos efeitos de nos mantermos nesta atitude vigilantemente defensiva.
1. A atração fatal e seus efeitos
Indo direto ao ponto a que pretendo chegar, penso que seja altamente relevante visualizar o quanto as agressões verbais, os desmandos, os disparates, o desprezo à razão como elemento de aprimoramento da humanidade e os estímulos ao ódio promovidos pelo Presidente da República e seus seguidores têm pautado a grande imprensa, impulsionado as reações e dominado, de certo modo, os pensamentos de todas as pessoas – o que serve também para disfarçar os vários retrocessos impostos desde o início de 2019.
Vejamos isso por meio de alguns poucos exemplos.
Quando se comemorava o “Dia Internacional de Luta das Mulheres” espalhou-se a notícia de que Bolsonaro iria se filiar ao Partido da Mulheres, para se candidatar às eleições de 2022[4].
No momento em que o caos restou completamente evidente, com o Brasil registrando recorde da média de mortes pelo 20º dia consecutivo, e, enfim, os Estados e Municípios começaram a anunciar medidas de restrição de circulação mais drásticas e necessárias para conter o contágio – já com bastante atraso e até mesmo de forma insuficiente, por não chegarem ao necessário “lockdown” (com raras exceções – Araraquara-SP, por exemplo), com incentivo da mídia, vale frisar – o Presidente voltou à carga para dizer que essas medidas dos governadores gerariam o caos e complementou: "O povo não tem nem pé de galinha para comer mais. Agora, o que eu tenho falado, o caos vem aí. A fome vai tirar o pessoal de casa. Vamos ter problemas que nunca esperávamos ter problemas sociais gravíssimos"[5].
Desta feita não apenas apresentou suas costumeiras bravatas, também agiu, interpondo, em nome próprio, perante o Supremo Tribunal Federal, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, para questionar a validade jurídica dos Decretos estaduais que determinaram as restrições de circulação e funcionamento do comércio[6].
Esses são apenas alguns exemplos dentre inúmeros outros que demonstram como, desde o período pré-eleitoral de 2018, o bolsonarismo tem conseguido pautar as discussões e até mesmo a produção intelectual do país e, com isso, no período da pandemia, impedindo que os esforços de todas as pessoas, entidades e instituições – como seria necessário – fossem direcionados ao combate cientificamente recomendado (prevenção e preparação para vacinação), incluindo o direcionamento para ações coletivas e solidárias em nível nacional, ao novo coronavírus, o que pressupunha, sobretudo, o afastamento dos empecilhos, inclusive políticos, que se colocassem como óbice a essa empreita. Com todos seguindo o caminho estrategicamente desviado pelo Presidente, e sem, por conseguinte, reagir de modo eficaz e oportuno, o número de mortes só fez aumentar, até se chegar a uma situação totalmente sem controle e sem expectativa de melhora, caso mantida a mesma dinâmica desviada da realidade concreta.
Inicialmente se poderia ver nas diversas iniciativas presidenciais meras coincidências resultantes de uma espontaneidade inconsciente, irresponsável e sem limites, mas, considerados todos os eventos somados, resta evidenciado que as manifestações bolsonaristas constituem uma estratégia bem articulada para, gerando espanto e indignação em alguns, e estado de êxtase e histeria em outros, desviar o foco da realidade e, com isso, atrair a todos e todas para dentro de uma bolha onde tudo se move pela ausência da razão, da estupidez e do ódio.
Dentro dessa bolha, também quem se opõe trata do mesmo assunto e, em certa medida, confere ainda mais visibilidade aos ataques ao conhecimento, possibilitando-lhes situar no mesmo plano da razão responsável. E, levado pelas regras do jogo pré-estabelecido, acaba agindo movido pela mesma lógica, seja debochando de declarações que deveriam causar repulsa, seja conduzindo o debate para o campo das agressões pessoais, por meio do recurso a adjetivações que não dão conta do que representa, politicamente, a conduta bolsonarista.
O maior problema é que, não raro, na formulação dos argumentos de contraposição, acaba-se reproduzindo a mesma lógica do agressor e busca-se enfrentar o ódio, com ódio; o desconhecimento, com fugas convenientes da realidade total; o revisionismo histórico, com a história mal contada dos dominantes; o autoritarismo, com outras formas de autoritarismo; o negacionismo, com a negação da própria parcela de culpa etc.
Esse tipo de reação, em grande medida, retroalimenta e confere um quê de “razoabilidade” às formulações que preconizam retrocessos à evolução humanitária do conhecimento, pois se a pessoa que é acusada de promover o ódio é agredida com igual intensidade odiosamente ofensiva deixa de ser a agressora para assumir a posição de vítima e vice-versa.
O fato é que, jogando com as mesmas regras impostas pelo bolsonarismo, facilmente as posições se invertem, ainda que apenas retoricamente. E o que o desprezo ao conhecimento mais precisa para se manter vivo e até predominante é exatamente de uma boa retórica. Não se pode esquecer que o bolsonarismo cresceu por meio do recurso retórico da “moralização” do país e do antipetismo, o qual se apoia no sentimento preconceituoso de que qualquer coisa é melhor que o PT e de que todo método ou aliança é válido desde que seja para afastar petistas do governo.
Mas há uma enorme dificuldade para se formular um enfrentamento eficaz e sólido ao bolsonarismo. É que as instituições e valores atacados pelo bolsonarismo (mesmo que se reconheça que são só ataques vociferados, destituídos de racionalidade) não são facilmente defensáveis. Para fazer imperar o desprezo ao conhecimento e o apreço ao ódio, o bolsonarismo chega mesmo a fazer uma espécie de escracho dos valores e instituições democráticas, mas o faz aproveitando-se da própria fragilização, frente aos compromissos constitucionais e democráticos, em que tais valores e instituições foram historicamente mergulhados.
Não se percebendo disso ou não se querendo assumir os erros históricos cometidos, sob o argumento (que muito contribuiu para que chegássemos onde chegamos) de que não é o momento oportuno para essa confissão, acabam-se formulando enfrentamentos argumentativos que, mesmo se reconhecida a diferença de seu grau de intensidade, reproduzem os mesmos defeitos, estando em sua base a insinceridade com o outro e consigo mesmo, o que corrói o alicerce necessário para a construção coletiva do pensamento.
É importantíssimo, portanto, antes de qualquer enfrentamento ao bolsonarismo, reconhecer que a formulação de compreensões desapegadas da realidade, seguindo, isto sim, o cálculo matemático da conveniência política, já vinha habitando o nosso cotidiano há anos e que, de forma progressivamente acumulada, foi nos distanciando cada vez mais do conhecimento e compromisso ético do pensamento.
Em vários textos publicados desde as manifestações de junho de 2013[7], venho denunciando a existência de uma escalada do descompromisso empírico e o quanto essa fragilização ética corrompia a “nossa capacidade de sermos humanos”[8] e abria espaço para o medo e o fanatismo dos quais se alimentam o autoritarismo[9].
Há de se reconhecer, portanto, que não é uma tarefa simples enfrentar o bolsonarismo, sobretudo por ser ele, em grande medida, o fruto de nossos próprios erros e omissões. Para enfrentar o bolsonarismo precisamos, pois, conjuntamente, enfrentar os nossos fantasmas. Essa é a única forma de se estabelecer uma narrativa que possa ser efetivamente propositiva, interrompendo o jogo ilusionista que se instaurou e do qual o bolsonarismo, como subproduto, se vale para aprofundar a destruição de tudo e de todos.
2. O enfrentamento
a) A Ciência e o Conhecimento
Assim, quando se for formular uma oposição aos atos do governo que se apresentam como um completo desprezo à ciência e, por consequência, for necessário falar da importância do saber científico, é preciso não esquecer que a ciência, entre nós, tem sido marcada pelo domínio da lógica do mercado.
Quanto de nossos “saberes” não foram, ao longo de décadas, forjados para atender interesses de grandes corporações, as quais, inclusive, não raro, financiam as “pesquisas”?
Dessa sistemática comprometida com interesses determinados da produção do “saber” advém, inclusive, a sua privatização, para uma exploração comercial. O saber produzido pelo esforço conjunto da humanidade, historicamente concebido, se torna propriedade de alguns, como forma, inclusive, de estabelecer e manter relações de dominação.
Quem domina e detém a propriedade das novas tecnologias exerce uma relação de poder sobre quem delas dependa para sobreviver ou delas se queira ou precise valer para se integrar ao mundo.
Foi assim, inclusive, que durante a tragédia humana de uma pandemia, a sobrevivência de todos resta dependente de algumas poucas empresas no mundo que podem produzir as vacinas.
Por isso, ao mesmo tempo em que se defende a ciência é preciso fazer a ressalva do quanto a ciência, desvinculada do aprimoramento da condição humana e comprometida com a lógica de lucros e a apropriação privada do conhecimento e da tecnologia, acaba contribuindo para a morte, a privação, a dependência e o sofrimento de milhões de pessoas.
A maior contribuição que a “ciência” – ou, mais propriamente, aqueles que a dominam – poderia concretizar neste momento seria a de renunciar às suas patentes. Mas isso, também, certamente, poderia (e deveria) ser promovido pelo Estado.
Por fim, ainda sobre esse aspecto, é por demais importante lembrar a dificuldade que se impõe, sobretudo na realidade de países periféricos como o Brasil, à generalização do acesso ao conhecimento.
As perguntas que emergem desse envolvimento são necessariamente: Que ciência queremos? Que conhecimento produzimos?
b) A Democracia
Quando, diante de arroubos autoritários, pelos quais se preconiza abertamente, inclusive, o retorno da ditadura militar, for preciso se posicionar em defesa da democracia, deve-se questionar de que democracia se está falando. Se for a democracia que tivemos até agora, que é, de todo modo, inegavelmente melhor que qualquer tipo de ditadura, é preciso que se lhe faça muitas ressalvas.
Primeiro, essa democracia – conceito, que, idealmente, não se concebe apenas como possibilidade de expressão e pelo direito de voto, e sim pela vivência prática e que pressupõe a efetiva fruição dos direitos fundamentais, civis, políticos e sociais – não tem atingido a maior parcela da população brasileira, população esta que, até por isso mesmo, não se sente nem um pouco animada a defender a democracia e facilmente é convencida de que uma ditadura poderia lhes conferir melhor sorte.
Segundo, a democracia representativa se vê gravemente viciada quando grupos economicamente prevalecentes comandam – com apoio e até mesmo submissão da imprensa – o cenário da formação de uma opinião pública que reflete não as necessidades da população como um todo, mas sim o interesses de seus negócios e, com isso, dominam o próprio governo, o qual, portanto, ou se elege em razão dos compromissos assumidos com esses setores ou, para se manter no poder, diante da pressão midiática, firma e atua em conformidade com esse mesmo compromisso.
Qual democracia defendemos?
c) A Liberdade de Imprensa
Quando se for denunciar os ataques à liberdade de imprensa, deve-se lembrar que a defesa da liberdade de imprensa está atrelada ao direito fundamental à informação. Desse modo, sem dar as mãos aos que querem inviabilizar a imprensa e atacar os mensageiros das notícias (os jornalistas e repórteres), é preciso questionar se a imprensa brasileira, dominada por empresas privadas, tem cumprido, efetivamente, o papel de democratizar o país por meio da informação precisa dos fatos ou se, ao contrário, utiliza sua posição para defender, de forma velada, alguns interesses. Inegavelmente, a imprensa tradicional brasileira mais desinforma do que informa, principalmente quando se trata de questões trabalhistas, atuando em correspondência com seu ideário assumidamente liberal ou mesmo neoliberal. Para defender a imprensa e afrontar o autoritarismo, não é possível, também, se dispor a realizar uma associação cega com as empresas da imprensa tradicional brasileira. Deve-se cobrá-las pelos males cometidos, ao mesmo tempo em que se deve preconizar a urgência da retomada do projeto de uma eficaz e abrangente rede pública – independente dos governos – de comunicação.
Qual imprensa deve nos informar?
d) A Liberdade de Expressão
Quando for preciso defender a liberdade de expressão, é preciso que se esteja disposto a ouvir ou ler o que não se quer ou não se goste de ouvir ou ler. A noção de que se tem a liberdade irrestrita de defender a própria ideia, ao mesmo tempo em que se admita a repressão das manifestações de ideias com as quais não se concorde ou se considere repugnante, é incompatível com o sentido pleno da liberdade de expressão. Uma coisa é reparar o efeito concreto de uma fala na perspectiva dos direitos que possa ferir. Outra, bem diferente, é utilizar de mecanismo autoritário, como a Lei de Segurança Nacional, com tipo aberto de caracterização criminal, para reprimir o autor da fala e disciplinar o pensamento.
Que liberdade de expressão defendemos?
e) O Poder Judiciário
Quando for necessário sair em defesa do Judiciário, por considerá-lo, como de fato é, instituição relevante do regime democrático, há de se lembrar que o Judiciário em nosso país tem servido, ao longo de sua história, como um gerenciador dos interesses da burguesia, tanto que é bastante rígido quando se refere à defesa dos direitos patrimoniais e, ao mesmo tempo, extremante flexível com relação ao descumprimento dos direitos sociais, que sequer é visto como o cometimento de uma ilegalidade. O Supremo Tribunal Federal, desde 2014, de forma mais intensa e sistemática, tem se dedicado a desconsiderar o pacto constitucional para esvaziar o conteúdo jurídico e obrigacional das normas trabalhistas. Então, no momento em que o STF é maliciosamente atacado e seus Ministros são covardemente atacados e se faz necessário expressar uma defesa da instituição e da integridade física e psíquica de seus membros, deve-se também recolocar sobre a mesa todas as cartas que, por atuação do STF e contrariando as regras impostas pela Constituição, foram usadas contra os trabalhadores no jogo político e econômico do conflito capital e trabalho. A própria Justiça do Trabalho, ademais, em várias decisões, tem passado ao largo da inconstitucionalidade formal da Lei n. 13.467/17, que foi fruto e motivo do golpe de Estado em 2016, e, com isso, legitimado as diversas formas precárias de contratação trazidas pela lei da “reforma” trabalhista, as quais pioraram consideravelmente as condições de vida dos(as) trabalhadores(as) e deterioram ainda mais as condições sociais e econômicas do país e, mais tarde, potencializaram os males da pandemia. Durante a pandemia, aliás, a Justiça do Trabalho, com suporte na mesma lei da “reforma” e desapegando-se da Constituição e de Tratados internacionais, garantiu a grandes empresas o “direito” de conduzir milhares de trabalhadores ao desemprego. Não se pode esquecer, ademais, que foi a própria estrutura de cúpula do Judiciário, em especial o CNJ, acatando os comandos do Banco Mundial, que difundiu, no seio da magistratura, a lógica de um juiz-gestor, ávido pela produção numérica e reprodutor, em suas decisões, da lógica de mercado e que, alheio a isso, promoveu perseguições e ameaças aos juízes que ousassem exercer a garantia – inserida em praticamente todos os Tratados Internacionais de Direitos Humanos – da independência jurisdicional.
Qual Judiciário dita nossas regras?
f) O Poder Legislativo
Da mesma forma, quando o Congresso Nacional for afrontado e os parlamentares submetidos a coerções abusivas e criminosas e, para afastar o fantasma do fascismo, tivermos, então, que nos postar, obrigatoriamente, em sua defesa, não se poderá fazê-lo jogando para debaixo do tapete todo histórico recente (e não tão recente assim) da atuação legislativa que compactou com golpes de Estado e com uma produção legiferante sob encomenda do poder econômico, apoiada em preceitos neoliberais, tais como a “PEC do fim do mundo”, a “reforma” trabalhista, a “reforma” previdenciária, a Lei n. 14.020/20 e a EC 109/21 – isto para ficar em apenas alguns poucos exemplos e mais recentes – das quais adviera maior concentração de riquezas nas mãos de um número ainda menor de pessoas, evasão de divisas, sofrimento e empobrecimento mais intenso da classe trabalhadora e da população em geral e desapego total ao compromisso de solidariedade.
Que Legislativo queremos?
g) A História
Finalmente, quando se for formular oposição ao revisionismo histórico, pelo qual, para justificar retrocessos, se negam ou se pervertem os fatos passados publicamente conhecidos, é necessário não vislumbrar essa contestação como uma oportunidade de fazer sobressair, para a satisfação de um interesse pessoal de índole meramente teórico ou político eleitoral, uma versão histórica igualmente descomprometida com os fatos. Em nosso caso concreto, se é fato que a situação econômica, política e social do país está em estágio profundo de deterioração, beirando o caos, não quer isso dizer que todos os nossos problemas sejam obra do atual governo e que, portanto, tudo se resolverá, como um passe de mágica, com a alternância do poder em 2022.
Alguns chegam mesmo a dizer que o Brasil chegou ao ponto em que está porque a elite nacional não suportou a evolução social que vinha sendo promovida no país nos governos petistas, dando a entender que até aquele instante, antes do golpe de 2016, tudo vinha maravilhosamente bem em nossa realidade. Esse argumento, cabe perceber, se assemelha, em grande medida, ao argumento que, em 2016, dominou a retórica do golpe político que foi a necessidade de recolocar o Brasil nos trilhos, ou devolver o Brasil aos brasileiros, vez que a Presidenta Dilma (e só ela) teria levado o Brasil à ruína.
Ao se argumentar que o governo Bolsonaro (e só ele) foi o responsável por todas as desgraças brasileiras, tendo rompido, inclusive, os nossos laços sociais, omite-se o dado histórico real, publicamente conhecido, de que os governos anteriores também deixaram à margem das possibilidades de vida decente uma parcela significativa da população brasileira, para a qual o Estado seguiu sendo mais concretamente presente pelo uso da repressão. Isso acaba por reforçar, na mente de muitos, a visão bolsonarista de mundo, que se justificaria para enfrentar o negacionismo petista. Que chance, afinal, se pode ter de convencer uma pessoa simpática ao bolsonarismo se o argumento utilizado contra o revisionismo histórico for outro revisionismo, no sentido de que o Brasil andava a mil maravilhas nos governos petistas? Aliás, qual a diferença, do ponto de vista do respeito aos fatos históricos, entre o discurso que exalta a ditadura como um período virtuoso para a nação brasileira e aquele que afirma que nos anos de 2003 a 2015 se consagrou no Brasil um estágio pleno da justiça social?
O concreto é que, como denunciei em inúmeros textos (sempre sob o ataque de que não era o momento adequado para explicitar críticas), os 14 anos que se antecipam ao golpe são marcados por uma espécie de “decifra-me se for capaz”, com a avanço de políticas sociais por um lado, mas sempre com grandes acenos ao mercado e ao poder econômico, tanto que o então Presidente se orgulhava de dizer que os bancos nunca haviam ganhado tanto dinheiro quanto naquela época. Muitos dos avanços sociais se fizeram em parceria com empreiteiras, com a mídia corporativa e com instituições de ensino privado. Enquanto isso, sob o argumento de conveniência eleitoral, manteve-se sob controle as estruturas de organização da classe trabalhadora, burocratizando-a e reprimindo, com violência, mediante a utilização de formas jurídicas criadas durante a ditadura militar e de outras que desconsideraram o pacto de solidariedade firmado na Constituição Federal de 1988, como a Lei de greve de 1989, os movimentos sociais que procurassem avançar em suas pautas para além dos limites calculados pelo governo. É sempre bom lembrar que, embora com ampla aprovação popular e vivendo um momento de avanço da economia, inclusive em nível internacional, tais governos, além de manterem vigentes as iniciativas flexibilizadoras nas relações de trabalho promovidas no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, também ignoraram pautas históricas como a reforma agrária, a legalização das terras indígenas ou a taxação de grandes fortunas e permitiram ações predatórias como as que ocorreram em Jirau e Belo Monte.
Tudo isso, regado a muita retórica e forte ataque aos opositores (não importando o seu viés ideológico), abriu espaço para que os falsos argumentos da moralização e do combate à corrupção parecessem expressar um movimento da razão contra o disfarce. Fato é que, como já advertia na época, a insinceridade e a ausência da elaboração e da explicitação clara de um projeto de nação fragilizou o governo perante as forças reacionárias e promoveu o seu distanciamento das mobilizações populares e trabalhistas.
Essa obstrução frente ao percurso histórico é tão grave que muitos, lendo essas linhas, ainda que reconheçam – o que já é um grande passo, porque tantos outros sequer chegariam a esse reconhecimento – dirão, de todo modo, que não é o momento para essa explicitação e para a formulação de críticas, devendo os esforços serem concentrados na unidade para o enfrentamento do fascismo representado pelo atual governo.
Ocorre que considerar o enfrentamento em questão apenas como uma oportunidade da retomada do poder nas eleições de 2022, para que se dê continuidade à mesma política anterior – tanto que Lula, cuja prisão política enfim e tardiamente foi reconhecida, no seu primeiro discurso após retomar a elegibilidade já fez vários acenos ao mercado –, eternizando a versão de que tudo vinha bem no Brasil até o golpe de 2016, que foi o prenúncio da ascensão do bolsonarismo, com a quebra definitiva, em 2018, dos laços sociais, representa reforçar o negacionismo que, em grande medida, nos trouxe até aqui, perpetuando uma visão política que não altera as estruturas que permitem a prática de violência institucional da intensidade que hoje a população brasileira vem sofrendo.
Além de se constituir um desserviço à formação do conhecimento, que requer ética e apreço à realidade, contribuindo, pois, para reforçar as barbaridades de toda espécie, o grande problema dessa postura é que o Brasil vivencia um momento de tragédia, com milhares de mortes a cada dia, como resultado de uma política governamental negacionista, e não se pode integrar essas vidas perdidas à conveniência do cálculo político eleitoral, já que isso transforma em igualmente responsáveis pela situação todos que dela vislumbram, de algum modo, algum benefício. É preciso agir e o momento é agora.
Ademais, preconizar que a solução para a tragédia em que nos situamos é retomar o passado – que foi, como visto, o que, em grande medida, nos conduziu até aqui – representa, desde já, nos negar a esperança de um futuro.
Que compromisso com a história queremos ter e o que pretendemos aprender com ela?
3. Conclusão
Em suma, para que esse modo muito peculiar de ver o mundo, que nega o que existe e pouco faz da vida alheia, denominado bolsonarismo, seja eficaz e seriamente enfrentado e se tenha chance real de vencê-lo, primeiro há que se reconhecer sua força e, segundo, é preciso admitir que não se trata de um elemento exógeno ao nosso percurso histórico. Deve, antes, ser visualizado como agravamento e atração de várias de nossas doenças não devidamente curadas. De forma simplificadamente grotesca, o bolsonarismo é mais efeito do que causa, embora, depois de instaurado, se reproduza como causa de novos e ainda mais graves feitos.
O que é preciso compreender é que não vamos sair da trágica situação em que nos encontramos – e isso também precisa ser reconhecido (o negacionismo otimista ou o mero conformismo milita também contra a necessária reação) – sem uma reflexão profunda do que somos enquanto nação e enquanto seres humanos e isto deve ser feito, necessariamente, sem tomarmos as fantasiosas pautas bolsonaristas, estrategicamente massificadas, como pontos de partida, até pelo pouco efeito concreto desse enfrentamento, já que, de certo modo, sobretudo entre os já convencidos, é muito fácil (embora arriscado, diante da estrutura repressiva cada vez mais intensa e articulada) ser um antifascista. O difícil e mais importante é dizer a favor do que, afinal, se coloca, sem se omitir sobre os problemas e os desafios a enfrentar, tópico por tópico...
Pensando especificamente a partir da visão de mundo que me inspira, é essencial que o bolsonarismo seja vencido por um sólido e consistente projeto de esquerda, pois, do contrário, o risco que se corre é que possa ser superado, com o apoio e o compromisso das forças sociais (partidos políticos, movimentos sociais e organizações trabalhistas), para o desenvolvimento, sem qualquer contestação, de um projeto ultraneoliberal, não importando muito quem ocupe o trono. E não se trata de colocar o dilema: fascismo ditatorial ou ultraneoliberalismo democrático, pois, ainda que por formas diferentes, os dois oprimem e matam.
Além disso, como dito mais acima, esse dilema, que é uma reprodução do “mal menor” que nos dominou durante anos e que, em grande medida, nos trouxe até onde nos encontramos, gera o efeito de nos atrair para dentro do campo magnético da desconsideração da racionalidade humana, valendo lembrar que a razão foi abarcada como essência da existência mundana, exatamente por exercer o papel de possibilitar aos seres humanos a crença de que, pelo conhecimento, poderiam dominar a natureza e racionalizar as relações sociais e assim projetar o futuro da humanidade em uma perspectiva de constante melhoria.
A acomodação diante da inexorabilidade ou como resultado do apego às possibilidades dadas pelo menor dos males tem sido, ao longo dos anos, a fórmula perfeita para a mutilação da razão e a destruição das utopias, ao mesmo tempo em que, certamente, serve a alguns poucos e seus propósitos egoístas.
É importantíssimo neste momento histórico que sejamos capazes de nos apresentar como seres melhores do que já fomos e que não caiamos nas armadilhas impostas pela violência, a vociferação e o medo, que nos fazem desacreditar dos seres humanos e nos levam a acreditar que só se vence o ódio com mais ódio, o autoritarismo, com outras formas autoritárias de convívio e assim por diante.
Podemos e devemos ser melhores do que isso. Lembremos de tantos que lutaram para que chegássemos a uma realidade diferente daquela que outrora se vivenciou, ecoando o lema, “amanhã será outro dia”. Precisamos, efetivamente, de outros e renovados dias, em que a humanidade seja marcada pelo império das utopias, da igualdade, da inclusão, do respeito, da tolerância, da superação das estruturas racista e patriarcal, da razão, do conhecimento comprometido com o todo social, do domínio público ao processo e aos efeitos da produção científica, da clareza, da sinceridade, do amor, da solidariedade e da humildade.
Em outras palavras, o convívio social reificado e fetichizado, que são as marcas da sociedade capitalista, já deu mostras de suas limitações ou, como se pode dizer, de sua incompatibilidade com a condição humana.
E para que consigamos ser efetivamente melhores do que fomos até agora e consigamos sair das amarras da atração comprovadamente fatal do bolsonarismo, é essencial assumir o desafio de superação do sistema desumano que nos aprisiona, sendo que o ponto inicial para essa mudança, cujos passos podem e devem ser dados, exemplificativamente, em cada um dos aspectos acima tratados, já está evidenciado, de forma emergencial, no caso brasileiro, nas mais de 300 mil mortes (vítimas da COVID-19 e do descaso), no colapso institucional e na ausência de qualquer perspectiva de futuro.
Que mundo queremos? Que sociedade vamos construir e para quais seres humanos?
São Paulo, 25 de março de 2021.
[1]. https://saude.ig.com.br/coronavirus/2021-03-03/em-novo-recorde-brasil-registra-1910-mortes-por-covid-19-em-24-horas.html
[2]. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/chega-de-frescura-e-mimimi-vao-chorar-ate-quando-diz-bolsonaro-sobre-pandemia.shtml?utm_source=app&utm_medium=push&utm_campaign=pushfolha&id=1614881578
[3]. https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonaro-tem-idiota-que-diz-vai-comprar-vacina-so-se-for-na-casa-da-tua-mae/
[4]. https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-vai-filiar-se-ao-partido-da-mulher-brasileira-para-disputar-a-reelei%C3%A7%C3%A3o-1.582364
[5]. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/19/o-caos-vem-ai-a-fome-vai-tirar-o-pessoal-de-casa-diz-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola
[6]. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/03/19/bolsonaro-entra-com-acao-no-stf-contra-restricoes-de-governadores-do-df-ba-e-rs
[7]. Vide, por exemplo:
- https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Vencendo-o-terrorismo-do-medo-a-hora-da-politica/4/28133
- https://blogdaboitempo.com.br/2013/11/25/o-dominio-do-fato-no-imperio-da-farsa/
- https://www.jorgesoutomaior.com/blog/ser-e-nao-ser-eis-a-questao-e-a-saga-dos-cavaleiros-que-dizem-nem-ou-a-hegemonia-do-nonsense
[8]. https://blogdaboitempo.com.br/2014/02/13/os-outros-sao-os-outros-e-so/
[9]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/do-estado-de-excecao-ao-autoritarismo