Dada a intensa complexidade do momento e das paixões que suscita, e tomando como pressuposto a orientação democrática dos organizadores do evento, permitam-me ler meu discurso, para que consiga trazer de forma mais clara algumas reflexões de conteúdo crítico, até porque não tenho, nem nunca tive, intenção ou vocação para mobilizar massas, cabendo, inclusive, advertir para o fato de que qualquer movimento de massa, ou seja, uma grande movimentação popular desprovida de consciência, traz consigo riscos de efeitos inimagináveis e quase sempre trágicos.
Não vim aqui, portanto, para falar bem ou mal das pessoas de Moro, Dilma e Lula, e muito menos para expressar considerações sobre “coxinhas” e “petralhas”, aproveitando, inclusive, dessa observação para ressaltar que a subjetivação e a criação de categorias alegóricas servem apenas para obstruir as análises e estimular os sentimentos mais rasteiros da condição humana.
E seguindo esse propósito é preciso dizer que a “defesa da legalidade democrática” é uma expressão sem conteúdo claro. Assim, duas indagações se impõem: Que legalidade? Que democracia?
Sem o tempo necessário para aprofundar essa questão, quero deixar consignado que aqui estou para, repercutindo uma preocupação dos estudos que tenho realizado ao longo de quase trinta anos, fazer a defesa de uma legalidade concreta, que diz respeito à preservação e à efetividade dos direitos sociais, recusando, de plano, a eficiência da democracia hoje posta em prática para garantir a concreta aplicação desses direitos, devendo, pois, ser aprimorada, especialmente no que se refere às possibilidades de difusão midiática ampliada da visão de mundo da classe trabalhadora. A democratização da mídia é uma pauta em atraso e o efeito disso é exatamente o que está ocorrendo no Brasil atualmente.
Historicamente, o que se tem verificado no Brasil, ao longo de décadas, atingindo, pois, governos de todos os partidos, com exceção, talvez, do PTB na década de 50/início da década de 60, é um recorrente atentado à, digamos assim, legalidade dos direitos trabalhistas. A nossa realidade (passado e presente) é marcada pela supressão cotidiana de direitos trabalhistas, notadamente pela adoção, inclusive na administração pública, da terceirização, do banco de horas ou pelo mero não pagamento dos efeitos pecuniários desses direitos, sem que isso fira qualquer padrão de moralidade ou gere repúdio diante da impunidade conferida a tais práticas.
E, modernamente, essa postura vem acrescida da adoção disseminada de procedimentos de rebaixamento da condição humana dos trabalhadores no ambiente de trabalho com imposição de metas de produção inatingíveis, que tomam ares de perversidade por meio das cobranças e das ameaças de punições e do desemprego, sem falar das revistas íntimas que submetem trabalhadores e trabalhadoras a situações vexatórias, tudo acompanhado da inviabilização de uma reação por parte dos trabalhadores, já que não há o reconhecimento de um direito de greve que seja, efetivamente, um direito dos trabalhadores, não passando, pois, de um direito para legalizar e, assim, controlar a classe trabalhadora.
Essa constatação, de todo modo, não é suficiente para que não se tenha a necessária percepção das exigências emergenciais do momento, que trazem, sim, sérios riscos de retrocessos nesse aspecto dos direitos sociais, pois é inegável ter se instaurado uma ânsia – que parece descontrolada, mas não é – de punições seletivas, baseadas no argumento da moralidade, alimentada por uma pressa a se chegar ao resultado previamente pretendido. Só que para atender a essa pressa não há outro meio senão o de suprimir o respeito mínimo às garantias jurídicas fundamentais da própria ordem burguesa: presunção de inocência, ampla defesa, contraditório e duplo grau de jurisdição, que, no entanto, continuam valendo e sendo invocados, de forma exacerbada e para além do devido, para manter a impunidade no mundo do trabalho.
É inegavelmente grave, também, o acompanhamento midiático da atuação policial e judicial, sendo que, ainda, tantas vezes parte da grande mídia não se limita a isso, vez que também condena, enquanto se faz parecer democrática abrindo uma notinha para o suposto “outro lado”. E nesta semana a situação chegou ao ponto extremo da quebra da institucionalidade, quando judicialmente se autorizou a divulgação de interceptações telefônicas de pessoas que não são rés em um processo, sem sequer conferir a elas a oportunidade do contraditório, sendo que uma dessas pessoas é, nada mais, nada menos, que a Presidenta da República, e parte da grande mídia e da população, que se apoiam no argumento da legalidade, do Estado Democrático de Direito e na ética, “aplaudem” a medida.
Ora, se fazem isso com as garantias jurídicas que servem ao interesse da classe dominante contra os abusos do Estado, gerando o efeito, por muitos não avaliado, da abertura de uma porta ao totalitarismo, o que não fariam com os direitos sociais? Ainda que não estejam sendo devidamente respeitados, os direitos sociais ao menos estão declarados, permitindo que se lute por eles e o risco que se corre é o de que inclusive sua declaração deixe de existir.
Lembre-se que muitos discursos que impulsionam o movimento anticorrupção estão atrelados a uma crítica à política econômica, procurando com isso, inclusive, impedir a apreensão dos elementos de crise atinentes ao próprio modelo capitalista. E agora que o processo do aprofundamento do Estado de exceção já se instaurou as posições começam a ficar mais reveladoras. Foi assim que na tarde de quinta-feira (17/03), um economista de uma emissora de rádio global, disse com todas as letras que o mercado se passou a se posicionar pelo impeachment porque já se deu conta de que este governo não tem mais a capacidade de levar adiante as reformas estruturais que o mercado entende necessárias, dentre elas, como assumiu expressamente, a Reforma da Previdência, ficando nas entrelinhas, porque já faz parte do receituário neoliberal, reforma trabalhista e privatização de serviços públicos.
E o impeachment se revela como autêntico golpe porque, embora baseado no argumento da legalidade, não encontra limites legais para se impor. A FIESP, por exemplo, por intermédio de seu presidente veio a público, também nesta quinta-feira, dizer que para impulsionar o impeachment não descarta a realização de uma “greve geral”, que na perfeita técnica jurídica trata-se de lock out, o que é legalmente proibido.
Assim, não é nenhum absurdo ou mera força de expressão prever que eventual queda do presente governo venha acompanhada de um “comando” em torno da urgência da implementação de uma intensa reforma trabalhista, na qual a ampliação da terceirização pareceria peixe pequeno, até porque para ser levada adiante requereria o desmonte da Constituição de 1988, atingindo não apenas os direitos trabalhistas, mas também a Justiça do Trabalho, o que seria, sem dúvida, o sonho dourado de uma parcela da classe empresarial (que de brasileira pouco tem), sendo que a isso não se chegaria sem o aprofundamento da lógica do Estado de exceção, situação na qual todos seriam, de um jeito ou de outro, atingidos, inclusive pessoas da classe média que se acham integradas ao capital e que estão nas ruas alimentando esse monstro de sete cabeças.
E se alguém ainda tem dúvida de quem está no comando desse movimento, basta ver as oscilações do dólar e da bolsa que vão ao sabor da valorização ou desvalorização das notícias – e não propriamente dos fatos – que lhe interessam ou não.
De forma otimista – que não perco nunca – tenderia a dizer que esse controle do mercado mesmo sobre as manifestações contra o governo não é uma realidade plena. Quero acreditar que esses manifestantes, ademais, não são, como tantas vezes se costuma qualificar, integralmente pessoas de uma elite branca conservadora, que reproduz cultura racista, até porque racista, machista e egoísta tem para tudo quanto é lado. Desde as manifestações de junho de 2013 venho advertindo que a rua é um espaço plural e que a consciência de classe está em constante construção e disputa. Há de se reconhecer que dentre essas pessoas muitas se movem por um sincero, talvez ingênuo, é verdade, sentimento de justiça e de moralização da política, como forma de melhorar a sociedade brasileira. Pessoas, que, portanto, não rejeitariam, a priori e de forma definitiva, propostas em torno da efetivação de direitos sociais, como se viu, aliás, em junho de 2013, e como se verificou nesta quinta-feira, em São Paulo, quando a “multidão enfurecida” expulsou do espaço público o Secretário de Segurança Pública de São Paulo aos gritos de fascista e quando, logo na sequência, vaiou e chamou de oportunista o Presidente da FIESP. Claro que se tem que tomar cuidado com esse otimismo, afinal estão, no geral, corroborando com a quebra constitucional, que põe em risco a declaração dos direitos sociais, até porque se tem notícia também de hostilização a grupos, na manifestação, que pediam punição na máfia da merenda.
Há, portanto, um relevante desafio para a esquerda, que diz respeito à sua própria reconstrução, não assumida em 2013, que é o de não desistir de interagir com a realidade e de se prestar ao diálogo franco e desprovido de preconceito e soberba, sem, é claro, corroborar o propósito de forças conservadoras e neoliberais.
Vale reparar, também, que mesmo os políticos da oposição estão sendo rechaçados, embora isso também traga o perigo de abrir a porta para que se preconize, na possível sucessão, a necessidade de formação de um governo de coalizão, que se daria, por certo, sem a participação de efetivos representantes da classe trabalhadora, para conduzir o Brasil aos rumos do combate à crise econômica, crise esta que até pode ter alguma substância concreta, mas não é a crise de um partido e sim de um sistema e que também está politicamente bastante inchada.
Enfim, na linha da defesa da legalidade democrática baseada na essencialidade dos direitos sociais, não dá para fazer de conta que esses riscos não existem e se silenciar, pois o silêncio também fala.
Mas também não dá para perder o senso crítico – e isso não deixarei de lado, por coerência, nem mesmo em um contexto difícil como este em que se vê sob ameaça o funcionamento das instituições democráticas – e com isso passar a uma atitude de defesa da realidade que aí está, na qual os direitos sociais não têm passado de uma grande farsa e na qual já se demonstrou, por diversas vezes, que a efetividade dos direitos trabalhistas não está nas pautas governamentais, até porque na lógica atual das relações sociais a preservação do poder exige alianças e conciliações que renegam a um segundo plano os interesses da classe trabalhadora. Lembre-se, a propósito, das reformas prejudiciais aos direitos dos trabalhadores já realizadas pelo atual governo e do anúncio por este feito em torno da promoção de reformas na Previdência Social e nos direitos trabalhistas.
Muito menos deve servir para encobrir ou mesmo defender as relações promíscuas desenvolvidas por entes políticos com entidades privadas, que foram bastante reforçadas pela lei que já admite isso no nome, a lei das PPP (Parcerias Público-privadas), aprovada em 2004 e ampliada em 2014.
Não se esqueça, igualmente, da intensificação do uso da terceirização no âmbito do serviço público federal, do desaparelhamento do serviço de fiscalização do cumprimento da legislação do trabalho e do sucateamento do próprio Estado, como vem ocorrendo em Goiás, por intermédio da utilização de uma lei de 1998, declarada constitucional pelo STF em abril de 2015, sem nenhuma objeção direta de qualquer partido ou governo, cumprindo destacar a lógica de Estado de exceção já verificada naquele Estado de Goiás para conter a mobilização social contrária ao desmonte dos serviços públicos, que se desenvolve em pleno silêncio do governo federal e de muitos que se manifestam pela defesa da legalidade democrática.
Lembre-se, também, do recorrente uso dos aparelhos de repressão policial a greves de trabalhadores e a manifestações de estudantes e movimentos sociais, notadamente as ocorridas no período da Copa, o que torna sintomático, aliás, a ausência, nesse debate e nas mobilizações que lhe orbitam, de coletivos e de organizações de trabalhadores, estudantes e movimentos sociais que, trazendo os necessários recortes de raça, etnia, gênero e orientação sexual, pautam-se na temática classista. Esses segmentos não se veem integrados a essa disputa, destacando-se, ainda, o fato de que quase nada se fala a respeito em escolas e universidades ou em ônibus, trens e metrôs, onde chacoalham e se espremem trabalhadoras e trabalhadores. A disputa entre os que são contra ou a favor de um partido tem distanciado a consciência da realidade concreta, mas isso também como efeito da atuação massiva da grande mídia, que tenta fazer crer a parte considerável da classe trabalhadora que essa disputa não lhe pertence e que, até, já está fazendo a sua defesa ao enfrentar o governo e vindicar melhoras na economia.
Perceba-se, ainda, em momento grave como esse, a ausência de uma política consistente, séria e efetivamente acolhedora dos imigrantes.
É claro que o argumento anti-corrupção é vazio e até esconde propósitos maiores, mas não é uma preocupação desimportante, ao menos no contexto desse modelo de sociedade. E, portanto, a percepção da totalidade do problema não é argumento para ser conivente com a corrupção, exigindo-se, claro, o respeito às garantias constitucionais para se chegar à punição que seja legalmente prevista.
De todo modo, há sempre limite – não necessariamente jurídico – para essa defesa, pois as garantias não devem estar a serviço da impunidade. Neste contexto, juridicamente falando, também não dá para aplaudir o ato da Presidenta da República de nomear o ex-Presidente para o cargo de Ministro, pois isso agride a regra moral básica da coerência, que todos devemos ter, independente de orientação político-ideológica, na medida em que o ato constitui um atentado à própria legalidade democrática que estamos aqui defendendo, até porque o instituto do foro privilegiado é um entulho autoritário que a democracia popular deve repudiar.
Fato é que a defesa da legalidade democrática não pode ser descolada da fundamentalidade dos direitos sociais, e mesmo essa compreensão não pode se transformar em mera retórica político-partidária, vez que isso nos tornaria coniventes, ou até cúmplices, para usar uma expressão mais forte, de uma realidade em que impera a inefetividade dos direitos sociais.
Evidente que alguém com maior razão poderia dizer que mesmo os direitos sociais não bastam para se chegar a mudanças imanentes na realidade social e que a defesa desses direitos serviria, então, apenas como mais um elemento de alienação, até porque baseada na difusão da ilusão de acreditar que os aparelhos do Estado burguês possam ser aptos para fazer valer esses direitos com toda a intensidade que expressam, sendo, pois, um discurso que, no fundo, estaria a serviço do reforço das estruturas que criam mediações para legitimar a exploração do trabalho, alimentando a lógica de uma organização político-econômica mundial que favorece a poucos em detrimento de muitos (a grande maioria), já que segundo estudos, recentemente divulgados, 1% da população mundial detém mais riqueza que o restante 99%.
Mas aí já se tem uma questão que independe de uma abordagem teórica, pretensamente intelectualizada, a não ser no aspecto relativo à honestidade de reconhecer a existência de limites às potencialidades dos direitos sociais. Mudanças mais profundas na estrutura social dependem, isto sim, da vontade consciente da própria classe trabalhadora, passando por sua capacidade de auto-organização e de mobilização – e isso vem ocorrendo, ultimamente, de forma até irreversível, em vários segmentos, valendo lembrar, por exemplo, das greves dos garis, no Rio, e dos secundaristas, em São Paulo.
Na emergência do momento, ultrapassando os limites de um debate que tantas vezes se situa no plano restrito dos interesses de algum partido ou de alguns personagens específicos, que renegam a um segundo plano os efetivos interesses da classe trabalhadora, parece-me que o materialmente alcançável e necessário é a defesa e preservação da Constituição, do regular funcionamento das instituições democráticas e da declaração dos direitos sociais, com destaque para a Previdência Social, os direitos trabalhistas, a educação pública, a saúde pública e o transporte público, recusando retrocessos e buscando a sua concreta aplicação, tendo claro que na realidade brasileira, considerando todos os arranjos históricos, pode-se até qualificar como uma mudança altamente relevante para a superação do medo que a todos assombra a difusão da consciência em torno de que aplicar direitos sociais ou lutar pela sua efetividade não é crime!
Nestes termos, apresento neste instante, como em vários outros, uma declaração de solidariedade a todos e a todas que cotidianamente sofrem em função do desrespeito reiterado de seus direitos sociais praticado por parte de entidades públicas e privadas, expressando minha indignação diante dessa realidade e repudiando todo silêncio, toda violência e todo ajuste que se produzem no contexto da preservação dessa triste realidade.
Essa é a minha posição, sincera, séria e honesta, que trago à reflexão dos presentes, assim como de todos aqueles que estão vendo e ouvindo esse depoimento à distância ou que venham a se dedicar a fazê-lo algum dia.
E termino advertindo para a responsabilidade que todos temos, neste instante, de não convulsionar mobilizações massificadas e brutalizadas.
Era isso o que eu tinha a dizer!
Muito obrigado!
São Paulo, 17 de março de 2016.