Repete-se, de forma recorrente, o famoso pensamento de Gramisc, que expressa um “pessimismo, pela razão” e um “otimismo, pela vontade”.
A frase tem sido frequentemente utilizada para estimular o agir mesmo quando a situação, racionalmente analisada, conduz ao desânimo.
Ocorre que o uso dessa tática argumentativa acaba, na visão de muitos, gerando a consideração de que a razão é irrelevante e que, pode, inclusive, ser desprezada.
No entanto, primeiro, quer me parecer que o filósofo nunca tenha sugerido que a razão é desprezível e que o otimismo vale por si.
O otimismo, quero crer, não pode ser determinado pela fuga da realidade, pois, neste caso, não é otimismo e sim uma ilusão. O otimismo, inclusive, não deve influenciar as análises, que precisam ser racionais. A razão deve ser isenta de emoções ou desejos, para que a realidade possa ser apreendida como de fato se apresenta.
A razão, repita-se, não é um sentimento e sim uma espécie de equação matemática que adota como parâmetro os dados colhidos da experiência vivida, ou seja, da história. A razão é, portanto, um esforço de compreensão e de aprendizado que parte da materialidade e sob este ponto de vista, isenta de sentimentos, tende a ser cética e, de certo modo, pessimista.
Há, portanto, um grave problema quando os fatos são submetidos a uma interpretação dominada pelo subjetivismo e, sobretudo, pela potestade de uma suposta autoridade intelectual, seja para justificar ou “provar” uma teoria, seja para criar narrativas que sirvam de estímulo para a ação, sendo que, em boa parte das vezes, os dois propósitos andam juntos.
Mais grave ainda é o processo de selecionar da realidade apenas os fatos que sirvam à determinada narrativa, desprezando-se todos os demais.
Submetida ao império da disputa de narrativas, a realidade é deixada de lado, inviabilizando-se, com isto, a própria produção do conhecimento. E a ausência do conhecimento é um estado de anomia, solo fértil para a sedimentação de mitologias, do medo, da intolerância e do ódio.
Não é de hoje que venho alertando sobre as consequências nefastas geradas pelo predomínio das construções teóricas e das investigações conjunturais pautadas pelo pragmatismo político partidário, sobretudo em momento eleitoral, que não apenas desprezam a realidade ou que a recriam artificialmente, como também abrem o espaço para que quaisquer pensamentos explicitamente ofensivos à razão se apresentem como razoáveis ou até superiores, sobretudo quando se legitimam popularmente por meio da explicitação dos artificialismos da racionalidade tida como intelectualizada.
Neste contexto de pluralismo disseminado da artificialidade, ainda que uns pensamentos sejam bem mais artificializados que outros, não há ambiente para se estabelecer um produtivo confronto de ideias, já que impera a lógica do vale tudo e da convicção que não precisa se explicar e que se expressa de forma arbitrariamente aleatória e que, além disso, procura se impor pelo grito, pela força, pela ameaça ou pela chantagem.
Passados dois séculos e meio do iluminismo, em vez de estarmos experimentando os efeitos benéficos do acúmulo de conhecimentos, a humanidade, perdendo a referência histórica, está aí repetindo os seus erros e caminhando a passos largos em direção de uma bestialização orgulhosa de si mesma.
Ainda que muitos indicativos já vinham se pronunciando neste sentido, conforme denunciado em vários textos anteriores, não acreditava, sinceramente, que este momento fosse alcançado ainda na nossa geração. Ocorre que a pandemia antecipou os acontecimentos e, mesmo tendo o potencial de mudar o curso da história, acabou sendo um fator de aceleramento do processo histórico.
No início da pandemia, em abril de 2020, escrevi um texto, no qual, sem perder o necessário ceticismo da razão, vislumbrava a tragédia humana em curso como uma possibilidade para que se compreendesse quais são os valores que efetivamente importam para os seres humanos e para que se conseguisse, enfim, formular avaliações críticas sobre o contexto social, historicamente construído, que fazia com que a pandemia, no caso brasileiro, tinha potencial de ser muito mais grave do que em outras regiões do mundo. O otimismo manifestado ao final do texto, preconizava: “...que a doença nos cure!”
No entanto, a política governamental, que negou a gravidade da situação, que recusou a adoção de medidas preventivas, que negligenciou a importância da vacinação em massa e que, por intermédio da edição de MPs (926 e 927), se aproveitou do momento para aprofundar as formas de exploração do trabalho e, por assim dizer, “passar a aboiada” de modo a atender os interesses do grande capital, acabou agravando ainda mais a situação e ceifando, de forma absolutamente majoritária, as vidas de milhares de pessoas economicamente debilitadas e culturalmente excluídas.
Mesmo assim ao longo dos dois primeiros anos da pandemia, muito se disse sobre solidariedade, sobre reconhecimento da essencialidade do trabalho, sobre a necessidade de reconstrução da sociedade em outras formas de produção e de distribuição da riqueza, da formulação das bases de um dito “novo normal”.
Entretanto, em concreto, o que se viu foi um progressivo e constante aprofundamento das formas de exploração do trabalho e da politica de acumulação de riqueza, que tanto aumentou o sofrimento da classe trabalhadora, quanto propalou a pobreza e a fome. Não à toa, em julho de 2022, o Brasil voltou ao mapa da fome, e em situação considerada mais grave do que a média global (https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas.ghtml.
O itinerário desta mortalidade perversa foi explicitado em vários outros textos publicados neste blog e na Coluna de Valdete Souto Severo (vide endereço aqui).
Fato é que, com todo negacionismo e a ausência de efetivas atitudes de reformulação das bases sociais (como proposto no Manifesto), em pouquíssimo tempo, se atingia o número de 500 mil mortes, ao mesmo tempo em que crescia a desconfiança de que os aprendizados da tragédia não fossem assimilados, como destacado nesta passagem de texto escrito em 20/06/2020:
“Ontem chegamos a 500 mil mortes pela COVID-19.
No mesmo dia, em ato de repúdio à postura presidencial de desrespeito à vida e como forma de reconstruir as forças e a esperança, milhares de pessoas e movimentos sociais e coletivos, integrados, sobretudo, por trabalhadores(as) e moradores(as) das periferias, que são os que mais estão sofrendo as consequências da irresponsabilidade governamental, tomaram as ruas de muitas cidades brasileiras.
Noticiando os fatos, os jornais se viram obrigados a reconhecer a situação trágica pela qual passa a classe trabalhadora, mas nem por isso são capazes de exprimir uma só palavra a respeito da precarização das condições de trabalho estimuladas pela ‘reforma’ trabalhista que tanto defenderam.
Negligencia-se, inclusive, o fato que os trabalhadores têm direito à vida e que não vivem somente para comer, pagar contas e voltar para a labuta, sendo certo que com a precarização jurídica ter um trabalho está longe de garantir quaisquer desses direitos. E o Direito do Trabalho não deveria ser fator de legitimação da exclusão e sim instrumento para a efetivação dos Direitos Humanos.
Ao mesmo tempo, apesar de não ser dado a ninguém dizer que desconhece a necropolítica desenvolvida pelo governo federal, vez que expressamente admitida pelo Presidente da República, em dezenas de pronunciamentos expressos neste sentido, tendo sido, inclusive, admitida como tal em reunião ministerial amplamente divulgada, não se efetiva qualquer medida concreta contra o avanço das mortes de trabalhadores e trabalhadoras, fazendo-se, isto sim, um simulacro de reação institucional, que é o que efetivamente consiste a CPI no Senado Federal (pelo modo como vem sendo realizada), além da busca, por parte de tantos outros, de uma capitalização política do caos (que contribui para a manutenção do estado de coisas), de modo a alcançar benefício eleitoral em 2022.
Será que o grande legado que se extrairá da pandemia é a assimilação do cinismo coletivo como o pressuposto do ‘novo normal’?”
Seguindo este percurso inconsequente, chegamos, em outubro de 2022, ao saldo de quase 700 mil mortes, sendo a grande maioria de pessoas pobres, periféricas, negras e trabalhadoras (desempregadas, na informalidade ou em empregos considerados essenciais, mas sem direitos).
Como se previa, nenhum “novo normal” foi concebido, sendo que muitos ainda são saudosistas de um passado, pré-pandemia, marcado por uma renitente e recorrente construção histórica da desigualdade e da opressão.
Mas o que se assiste presentemente não se resume a isto e é ainda mais grave do que a racionalidade pessimista poderia prever.
Com efeito, a pandemia, concretamente, ainda não acabou e a realidade se move como se a pandemia nunca tivesse existido.
Os dados objetivos dão conta de que, em outubro de 2022, atingiu-se a marca de 688 mil vidas perdidas no Brasil e a cada dia somam-se novas vítimas. Só no dia 26 de outubro, foram 197 mortes, quando a média dos últimos 7 dias era de 69 mortes.
No entanto, o noticiário não diz nada a respeito e as relações sociais e institucionais se movem dentro de uma dimensão temporal que corre ao largo dos acontecimentos documentados.
Bem se sabe que é um processo recorrente na história da humanidade o esquecimento do passado, daí a se chegar a um autêntico caso de “perda de memória recente” a distância é muito grande e é isto o que mais surpreende no presente momento.
Ora, ainda nem se encerrou definitivamente o estado de pandemia e todos os efeitos nefastos para o conjunto da sociedade brasileira parecem não pesar mais na balança de um quarto da população, quase metade das pessoas em idade eleitoral obrigatória.
É bem verdade que a maior parte desse eleitorado sofreu apenas lateralmente com a pandemia, já que as vidas efetivamente perdidas foram daqueles e daquelas que se encontravam em posição de rebaixamento econômico e social.
Mas a gravidade do momento vai além, pois não se trata apenas de um esquecimento, mas de uma autêntica alteração consciente dos fatos havidos, para a defesa de interesses pessoais. Essa metamorfose retrocedida é tão complexa que a sua reiteração produz o fenômeno da perda da referência temporal e, concretamente, aqueles que dela se valem entram em uma espécie de universo paralelo, onde o “real” é mero fruto da sua vontade criativa.
É, assim, por exemplo, que aqueles que adotaram uma postura explicitamente negacionista quanto à seriedade e os perigos da pandemia, recusando a adoção de medidas preventivas ou mesmo desdenhando do sofrimento alheio, vêm a público para dizer que foram extremamente diligentes quanto ao enfrentamento da COVID-19.
E o pior é que acreditam tanto na versão criada que qualquer argumento, explicitação de dados, ou até mesmo o relato de falas por eles próprios utilizadas em sentido contrário é apontado como uma “mentira”, uma “conspiração” ou simples “intriga da oposição”.
Neste ambiente de disseminação daquilo que estou chamando de “retromorfose”, qual seja, uma alteração conveniente e consciente do passado, para servir de sustentação a um interesse particular no presente, a razão lógica e cientificamente comprometida, como elemento que qualifica os seres humanos, é intencionalmente abandonada.
Entra-se, como dito, em um plano tal de abstração que até o futuro, artificialmente concebido, serve como fundamento para justificar o presente.
De fato, desapegando-se do concreto ou até mesmo da honestidade intelectual, para promover uma atitude reacionária e refratária ao conhecimento, o apelo argumentativo se sustenta na difusão do medo.
A humanidade que, em certo momento histórico, teria dado passo decisivo em direção ao controle racional da vida, vê-se novamente ameaçada pelo domínio do obscurantismo, das figuras mitológicas e do medo das assombrações, dos castigos divinos, das maldições, das bruxarias, dos feitiços e das tentações satânicas, expressões que, em muitos discursos fantasmagóricos se resumem em uma só palavra: “comunismo”, mas com um sentido muito próprio deste abstracionismo alucinógeno, vez que totalmente desapegado do que efetivamente vem a ser uma concepção de mundo comunista.
A grande questão é que nada disso, de fato, se produz de forma aleatória como obra do acaso ou do destino.
Por mais contraditório que possa parecer, por trás de todo este processo de desumanização, baseado em renitente ataque ao conhecimento e desprezo da razão, há sempre uma racionalidade, ou melhor, uma inteligência a serviço da manipulação de fatos e da criação de abstrações, ilusões, aparências do real e encantamentos, para que seus interesses não revelados sejam tidos como os interesses de todos.
Trata-se, pois, de um processo de dominação.
Daí porque, como já se deveria ter aprendido com as experiências históricas, o ataque ao conhecimento constitui a fórmula básica da construção de regimes totalitários e ditatoriais.
Vide o exemplo do encantador de serpentes, que leva as pessoas a acreditarem que ele tem poderes sobrenaturais, que ele seria, assim, uma figura sobrehumana, mas que, na verdade, apenas sabe bem o modo de esconder os seus truques, como todo mágico, aliás.
A retromorfose, portanto, nada mais é que um truque, que tem permitido a certas figuras mitológicas alterarem o seu passado, o que lhes permite, inclusive, uma postura de constante metamorfose no presente, sem que seja necessário apelar ao multiverso.
Mas não é uma tarefa simples enfrentar o encantador, ainda mais no seu campo de jogo, e menos ainda revelar para o dominado o seu estado de submissão mental.
No contexto de um autêntico universo fantasiado, alimentado por crenças impressionistas, estabelecer um contra-ponto racional requer paciência e resiliência, pois qualquer fala que tende elucidar os truques e trazer a realidade à tona será tida uma perversão da “normalidade”, quando não, uma abominação, sendo quase sempre acompanhada de um ataque pessoal ao emissor.
Muito menos funciona a tática de tentar combater o encanto por meio de outros truques não revelados ou outras fantasias.
É preciso, pois, resistir e insistir com o apelo à razão e ao compromisso com a busca constante do conhecimento e a produção do saber.
Mais dia menos dia, o encantador passa a acreditar tanto em seus poderes ilusionistas que exagera na dose dos truques(*) e vê seu castelo fantástico começar a ruir. Então, a casa cai e o mito se desfaz, entrando em estágio pleno de uma retromorfose perambulante. E segue por aí sem rumos e objetivos, dando voltas em si mesmo.
Com o afastamento do teatro do absurdo, mesmo sob olhares atordoados e desconfiados dos que acabaram de se libertar da alucinação, abre-se a janela histórica para a retomada do processo de humanização e da construção de uma sociedade efetivamente igualitária, solidária e avessa à intolerância e ao ódio.
E neste instante iluminado, quando o cinismo não tem morada e o medo do conhecimento se esvai, a razão e o otimismo prevalecem e, andando lado a lado, alimentam o cérebro e o espírito!
São Paulo, 31 de outubro de 2022.
(*) O que já se evidencia com as inúmeras iniciativas (vislumbrando uma virada de mesa, mais propriamente denominada golpe de estado) intentadas, estimuladas e executadas desde o período do 2o. turno, incluindo o próprio dia da eleição, e, sobretudo, agora, no momento pós-eleitoral. (Nota inserida em 1o./11/22, às 8h25')