No dia 18/3/2025, o sítio eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho trouxe a notícia de que a partir daquela data estaria aberta, pelo prazo de 15 (quinze) dias, a possibilidade para que fossem enviadas ao Tribunal manifestações escritas de pessoas, órgãos e entidades interessados na discussão sobre a “pejotização”, que constitui tema de um incidente de recurso repetitivo, processo E-RRAg-373-67.2017.5.17.0121, que foi acolhido em dezembro de 2024.
Mas, ao meu ver, a questão fundamental é saber como chegamos até aqui.
Vejamos!
Para reduzir o campo de incidência da rede de proteção jurídica de cunho social e minar a efetividade dos direitos trabalhistas que impõem limitações à exploração do trabalho, das mais diversas estratégias se vale o capital.
Uma das formas pouco percebidas e, por isso, mais eficientes, é a da invenção de figuras jurídicas que se afastam, de forma dissimulada, do campo da aplicação integral dos direitos trabalhistas.
Sustentou-se que a utilidade da criação de uma espécie intermediária entre subordinados e autônomos seria a de eliminar a zona cinzenta que muitas vezes se forma entre a relação de emprego e a relação de trabalho autônomo e, assim, facilitar a aplicação dos direitos trabalhistas naquelas relações de trabalho ainda não abrangidas por estes direitos.
No entanto, o efeito concreto (já previsto na intencionalidade dos “criadores” da figura), foi o de se criar mais uma linha de fronteira, ainda mais cinzenta, entre o empregado e o “parassubordinado”, além daquela que separa este do autônomo (verdadeiramente, autônomo).
Não bastasse, como a proteção jurídica daquele a que se atribuiu o nome de “parassubordinado”, até para manter a pertinência da divisão, era, necessariamente, inferior à dos subordinados, o capital, que é quem detém maior controle sobre as formas de execução do trabalho, sabendo do parâmetro jurídico intermediário criado, no qual os direitos trabalhistas são menos evidentes, tratou logo de transferir antigos empregados para o campo da “nova” figura.
Assim, em vez de se ampliar o leque social de incidência do Direito do Trabalho, o que se verificou foi exatamente o inverso, reproduzindo-se, inclusive, a experiência antes vivenciada com a criação das “cooperativas de trabalho”.
A realidade desmascara a retórica da “parassubordinação” e a estratégia praticamente some dos bancos de teses acadêmicas e dos enfrentamentos jurisprudenciais.
Mas o capital, por evidente, não se dá por vencido.
Como a figura meio termo, nem empregado, nem autônomo, não funcionou, o capital se dispôs, então, a difundir argumentos que pudessem reinventar a própria relação de emprego, ou, dito de outro modo, a reconstruir o próprio campo de aplicação do Direito do Trabalho.
Passa-se, assim, a dizer que a relação de emprego típica já não existe mais e que, para manter a pertinência dos direitos trabalhistas, seria preciso direcionar os direitos trabalhistas a toda e qualquer relação de trabalho, superando-se, pois, o conceito de relação de emprego.
O argumento principal, igualmente, era o da ampliação da rede de proteção jurídica trabalhista, para alcançar relações de trabalho fugidias do Direito do Trabalho.
Ocorre que, para fazer isto, rompeu-se a barreira entre trabalho autônomo e trabalho subordinado, mas a realidade do trabalhador verdadeiramente autônomo é muito distinta daquela do trabalhador subordinado e, por consequência, várias normas trabalhistas simplesmente não teriam incidência nesta realidade (do trabalho autônomo).
Com isto, novamente, a ideia de um Direito do Trabalho mitigado e circunstancial se apresenta e, em vez da rede de proteção se ampliar para os autônomos, é a lógica privatista e individualizada destes que se alastra para as relações de emprego.
A iniciativa, que chegou a ser defendida por muitos juristas da linha de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras, também perdeu força, pois a lógica de todo o Direito do Trabalho se manteve coerente com a realidade do trabalho subordinado e o caminho adotado acabou sendo o de se melhor compreender o conceito da subordinação, para reconhecer a relação de emprego em relações de trabalho em que a autonomia não era mais que uma aparência, ou, mais diretamente, o efeito de uma fraude.
Como também esta fórmula, mais incisiva, não deu fruto, deu-se um jeito, então, de mudar a estratégia e passar a “comer pelas beiradas”.
Dentro dessa linha de atuação apelou-se para a figura do “hipersuficiente”, um tipo de trabalhador que não seria, pois subordinado àquele que se vale do seu trabalho, dada a sua condição pessoal de ordem econômica e de formação cultural, para o qual, por consequência, a proteção fornecida pelo Direito do Trabalho não faria sentido.
Para além do clássico “alto empregado”, para o qual algumas normas jurídicas específicas foram negadas (por obra da doutrina e da jurisprudência trabalhistas), o “hipersuficiente” não seria, de fato e de direito, integrado a uma relação de emprego. Sua relação de trabalho seria regida, única e exclusivamente, pelo ajuste livre de vontades.
A “reforma” trabalhista de 2017, por descuido completo dos elaboradores do texto e do legislador (o que se explica por diversas razões que não cabe trazer aqui), deu um passo atrás. Assim, da ausência plena de direitos, determinada pela negação da relação de emprego para este tipo de trabalhador, o parágrafo único do art. 444 da CLT, com a redação que lhe fora dada pela Lei n. 13.467/17, fixou o pressuposto da existência da relação de emprego para o “hipersuficiente”, embora, mantendo a lógica da retração de direitos, permitiu que este empregado negociasse individualmente condições de trabalho com o empregador, seguindo o mesmos parâmetros previstos para a negociação entre o sindicato de trabalhadores e a empresa.
Por outro lado, abaixou consideravelmente o sarrafo da concepção doutrinária e jurisprudencial que se tinha a respeito do tema e definiu o “hipersuficiente” como o “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social” (parágrafo único do art. 444 da CLT), qual seja, 2x R$8.157,41, em valores atuais.
Ocorre que o poder econômico já tinha bem mais do que isto e para manter vigente a “conquista” o jeito foi negar a relação de emprego para estes trabalhadores por meio da antiga estratégia de transformar o trabalhador em uma pessoa jurídica.
Por este mecanismo, tenta-se afastar a configuração da relação de emprego com o argumento de que a relação de emprego é uma relação jurídica que pressupõe a existência de uma pessoa natural, com relação à qual as normas trabalhistas possuem total pertinência, não sendo, pois, de modo algum, direitos que se aplicam em favor de uma empresa.
Esse tipo de estratégia, embora antiga, como dito, nunca gerou bons resultados para as empresas que dela se valiam para contratar trabalhadores, pois, a Justiça do Trabalho, de forma reiterada e quase unânime, negava validade ao negócio jurídico correspondente, entendendo que o que se produzira não era nada além do que uma fraude, ou seja, mera tentativa de impedir a aplicação dos preceitos trabalhistas, como já previa, inclusive, o art. 9º da CLT.
Pela aplicação dos princípios jurídicos trabalhistas, em especial, os princípios da primazia da realidade e da irrenunciabilidade, e por incidências do quanto fixado nos arts. 2º e 3º da CLT para a caracterização da relação de emprego, a transformação do trabalhador em pessoa jurídica constituía um grande risco jurídico para o empregador e um prejuízo econômico quase certo.
Mas, para o “hipersuficiente”, com relação ao qual parte da doutrina e da jurisprudência já afastavam a relação de emprego, a utilização da transformação do trabalhador em pessoa jurídica se mostrava bem mais “segura”.
E o próprio parágrafo único do art. 444 da CLT não se apresenta como um obstáculo, até porque, como dito, foi um tanto quanto efeito de um cochilo dos envolvidos no golpe institucional de 2016.
Passa-se a entender que se o “hipersuficiente” pode negociar livremente condições de trabalho, pode, até mesmo, dispor da relação de emprego em si.
E, assim, a estratégia se multiplica, se naturaliza e até ganha um nome: “pejotização”.
É bem verdade que a nomenclatura em questão já existia há tempos, mas para designar um tipo de fraude à legislação do trabalho.
Agora, ao contrário, aparece como um fenômeno das “novas” relações de trabalho em que a livre manifestação do trabalhador de se assumir como uma empresa individual e, com isto, rechaçar a proteção jurídica trabalhista, deve ser respeitada.
E, como na base da validação da “pejotização” está a livre negociação, a própria origem da estratégia, relacionada aos ditos “hipersuficientes”, é esquecida.
Entra-se na era do vale tudo para negar vigência ao pacto social firmado a partir de uma proteção jurídica mínima aos trabalhadores e que exerce função essencial também para conter a concorrência sem limites entre as empresas capitalistas!
Foi desse modo que chegamos ao momento um tanto quanto absurdo, no qual uma das instituições responsáveis pela validação do pacto constitucional fixado e que tem base também em diversos compromissos internacionais assumidos, formula, no processo inicialmente mencionado, as seguintes perguntas:
“É válida a contratação de trabalhador que constitui pessoa jurídica para a realização de função habitualmente exercida por empregados no âmbito da empresa contratante (‘pejotização’)? E a conversão de relação de emprego em relação pejotizada?”
Estas, no entanto, são perguntas que só se podem responder com outras perguntas:
- Como assim? Os Ministros do TST não conhecem os postulados básicos do direito que aplicam? Para os Ministros do TST existiria uma forma de afastar a relação de emprego pela mera vontade dos contratantes, mesmo que os fatos que permeiam a relação configurem a relação de emprego? O artigo 9º da CLT, não revogado nem mesmo pela “reforma” trabalhista, pode ser solenemente ignorado? E todos os preceitos constitucionais que tratam do “primado do trabalho”, da economia seguindo os “ditames da justiça social”, da “política do pleno emprego”, dos “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, da “dignidade humana, da “erradicação da pobreza”, da redução das “desigualdades sociais”, da construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, da “prevalência dos Direitos Humanos” e, sobretudo, da consideração dos direitos trabalhistas como Direitos Fundamentais marcados pelo princípio da progressividade, ou seja, da melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras? Todos esses preceitos jurídicos constitucionalmente fixados podem ser negados pela simples percepção pessoal dos Ministros do TST (e do STF) do que seja, efetivamente, o melhor projeto econômico para o país, baseado na ideia de que o custo social da proteção jurídica trabalhista causa “entraves à liberdade de organização produtiva dos cidadãos”? Podem tais preceitos ser desconsiderados, em nome do atendimento do interesse imediato das empresas (sobretudo, as de capital estrangeiro)? Como levar adiante o projeto de Estado Social, fincado na ideia de Seguridade Social, que abrange serviços de saúde, de previdência e de assistência, que pressupõe “equidade na forma de participação no custeio” e que possui como uma das principais formas de financiamento as contribuições sociais do “empregador”? Como seria possível manter o pacto de solidariedade do Estado Social com a prevalência do interesse individual sobre o projeto social? Que democracia é esta que não se compromete, em primeiro plano, com a efetividades dos Direitos Fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras? E, por fim, é possível se esquivar impunemente das lições históricas básicas de que a livre manifestação de vontade de quem está em estado de necessidade nunca é, de fato, livre e de que a liberdade negocial entre desiguais oprime e escraviza?
As respostas a todas estas perguntas são de uma obviedade plena e não merecem ser respondidas, até porque, em uma conversa honesta entre pessoas e instituições comprometidas com o projeto de Estado Social constitucionalmente fixado sequer teria lugar, como aquelas feitas pelo TST.
De todo modo, para evitar qualquer tipo de tergiversação, cumpre deixar expressas as respostas às perguntas formuladas pelo Tribunal Superior do Trabalho:
- Não e não!
E não é não. E ponto final!
São Paulo, 6 de abril de 2025.