1. O QUE É O DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO E POR QUE ELE É IMPORTANTE NO CONTEXTO ATUAL?
- A expressão direito à desconexão é, na verdade, uma designação, adaptada à terminologia do mundo tecnológico, de um bem jurídico específico, o direito ao não trabalho, ou, mais propriamente, o direito de ter vida fora do trabalho
- Há, certamente, outra dimensão, não menos importante, que é a do direito de preservar a vida e a saúde no trabalho
- Mas o direito à desconexão vai muito além do que isso e suas repercussões são bem mais amplas, como veremos a seguir
- A temática, tratada ainda apenas como uma necessidade de se desconectar do trabalho, ganhou força a partir do início dos anos 2000, em razão do avanço das formas de exploração do trabalho pelas vias informatizadas
- O apelo por uma desconexão surge neste período, na França, como um alerta social contra os avanços dessas formas de exploração do trabalho que começavam a invadir a privacidade de trabalhadores e trabalhadoras e a promover a generalização do sofrimento e da exaustão no trabalho
- Tomando contato com a questão, resolvi, talvez de forma pioneira, ainda em 2003, trazer a preocupação e o próprio termo utilizado para o campo jurídico, passando a falar, então, do direito à desconexão, de modo a avaliar quais mecanismos jurídicos poderiam/deveriam ser utilizados para barrar, ou, ao menos, dificultar o domínio da vida pelo trabalho
- (Vide o texto: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Do direito à desconexão do trabalho.” Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 23, p. 296-313, 2003)
3. O PROBLEMA É MAIS PROFUNDO
- O problema fundamental é que, na sociedade capitalista, que tem como primado a reprodução do capital por intermédio da exploração do trabalho alheio, o que só se efetiva quando a maior parcela da população está em uma condição social e econômica que lhe imponha a venda do trabalho, na forma da mercadoria força de trabalho, seguindo as regras da lei da oferta e da procura, como a única forma de sobrevivência, o trabalho se transformou em um trabalho abstrato (alienado), desvinculado da própria condição humana, o que, inclusive, causa estranheza e é fator decisivo para o adoecimento
- Mas, para que este processo se efetive, além das condições materiais historicamente concebidas, a essência dessa trabalho não pode ser revelada. É preciso, pois, continuar tratando o trabalho como uma virtude que “enobrece"
- Para que o modo de produção e reprodução reificada da vida não se apresente assim de forma tão evidente e rude, cria-se, ideologicamente, uma realidade ilusória, na qual o trabalho abstrato (alienado), objetivado e transformado em mera mercadoria, tem a aparência de uma condição da própria existência
- No Brasil, por exemplo, o chamado para o trabalho nas fábricas foi alvo de intensa campanha no governo Vargas, que, inclusive, chegou a patrocinar a composição de músicas que enalteciam o trabalho, como, por exemplo, em 1940, “O Bonde São Januário”, de Wilson Batista e Ataulfo Alves O Bonde São Januário
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar
O Bonde São Januário Leva mais um operário Sou eu
Que vou trabalhar
Antigamente
Eu não tinha juízo Mas resolvi garantir meu futuro
Vejam vocês
Sou feliz
vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
É, vivo bem
(Composição: Ataulfo Alves e Wilson Batista (940) / Intérprete: Cyro Monteiro)
https://www.youtube.com/watch?v=vsiS3sFfgTw
- No contexto em que o trabalho alienado toma conta da vida, a própria vida perde seu sentido próprio
- Isto facilita a naturalização e a consolidação dos processos de precarização das condições de trabalho
- A precarização, é bom que se diga, não está representada apenas pelas formas de exploração de trabalho sem direitos ou com redução de direitos
- Trata-se de uma precarização advinda da assimilação, sem qualquer escrúpulo de consciência,da desconsideração da condição humana da trabalhadora e do trabalhador
- E não é só, pois a precarização das condições de trabalho gera a precarização do serviço prestado, atingindo a todas e todos, nos mais variados momentos da vida
4. UMA TENTATIVA FRUSTRADA DE MUDANÇA NO CAPITALISMO
- Ao final da primeira e da segunda Guerras Mundiais, após ficarem explicitados todos os desajustes sociais provocados pela reificação da condição humana e a mercantilização da vida, foi reconhecida a importância da fixação de limitações legais à exploração do trabalho
- Como forma de viabilizar a reconstrução social, firmou-se um compromisso internacional, explícito no Tratado de Versalhes, em torno da ideia de que “o trabalho não é mera mercadoria de comércio”
- No entanto, mantido o modelo de sociedade capitalista, este princípio não é capaz de moldar os interesses políticos/econômicos dominantes que, dada a lógica da sua própria dominância, são incapazes de posicionar a vida humana como preceito fundamental
5. O CAPITALISMO SE REVELA
- Da década de 70 em diante, diante da nova crise do capital, o pacto firmado a partir do princípio de que o trabalho humano não é mercadoria foi, então, plena e solenemente abandonado
- Esse novo posicionamento valeu, sobretudo, como determinação das potências econômicas mundiais, para os países periféricos, para a facilitação dos negócios das grandes empresas ditas multinacionais
- Este novo ajuste dos países centrais, firmado no Consenso de Washington, 1989, deu impulso à incorporação das concepções neoliberais, pelas quais se assume, de forma explícita, que os governos devem privilegiar os interesses da produção industrial mundo afora, superando todos os entraves criados no período do Estado Social
- Mesmo não revogados explicitamente, os compromissos firmados em Tratados e Declarações internacionais em torno de uma outra socialização baseada em solidariedade no capitalismo, com justiça social, distribuição de renda, redução das desigualdades, promoção da solidariedade e inclusão de toda ordem, não mais integram as agendas políticas
- Efeitos imediatos:
- a) esfacelamento do tecido social;
- b) deterioração das relações de trabalho;
- c) aumento da desigualdade social; e
- d) destruição do meio ambiente.
6. O “NOVO” MUNDO DO TRABALHO
- Objetivo central: aumentar as taxa de lucros, por meio da extração de mais trabalho, com menor custo
- De forma globalizada, mas de uma maneira ainda mais intensa nos ditos países “subdesenvolvidos” e “em desenvolvimento”
- Tudo desvinculado de qualquer compromisso social
6.1 AS NOVAS FORMAS (DISSIMULADAS) DE REIFICAÇÃO
- O objetivo de extrair maior proveito da força de trabalho empregada deve ser promovido, mas sem que isto se perceba como tal
- As dissimulações e o cinismo passam a ditar as relações “desumanas” no mundo do trabalho
- Esse processo dissimulado de exploração é ainda mais adoecedor, pois não permite ao(à) trabalhador(a) a identificação da origem das suas dificuldades e dilemas no trabalho, o que dificulta, também, a sua reação
- Dissemina-se a noção de que a ausência de trabalho e precarização de direitos ou são efeitos inexoráveis da economia, dos avanços tecnológicos ou da incompetência do trabalhador ou da trabalhadora
- Quem não tem emprego é porque não se preparou adequadamente, sobretudo no aspecto do conhecimento tecnológico
- Quem tem emprego e nele não se mantém é porque não se adaptou ao meio ou às exigências do processo produtivo
6.2 MECANISMOS POLÍTICO-ECONÔMICOS
- Mas não só de retórica que se constrói esse “novo” mundo do trabalho: é preciso também despejar muitas outras formas de violência
- Basicamente, os interesses econômicos dominam as agendas políticas, para:
- a) imposição de reformas (retrocessos) da legislação social;
- b) enfraquecimento dos sindicatos;
- c) divisão da classe trabalhadora.
6.3 MECANISMOS IDEOLÓGICOS
- Os veículos de comunicação em massa são utilizados para a difusão do ideário empresarial, de modo a fazer crer que os interesses deste setor são os interesses de toda a sociedade
- A classe trabalhador é induzida a reproduzir a lógica econômica
- E a conceber a situação desfavorável como efeito dos “riscos” do seu “negócio”, ou de suas inabilidades
- Fala-se muito, então, em:
- a) empreendedorismo de si mesmo (o micro empreendedor); e
- b) direitos como privilégios.
- Difundem-se concepões baseadas na culpabilização da rede de proteção social pelas dificuldades experimentadas pela classe trabalhadora
- Aponta-se a exclusão como efeito inexorável do avanço tecnológico
6.4 MECANISMOS TECNOLÓGICOS
- A tecnologia é desenvolvida e utilizada para reduzir retoricamente a importância do trabalho, ao mesmo tempo em que serve para constituir novas formas de exploração do trabalho
- Com isto foi possível:
- a) expandir o espaço geográfico do mundo do trabalho;
- b) intensificar a exploração do trabalho por formas ainda mais nocivas à condição humana;
- c) acelerar o processo produtivo; d) reduzir e até eliminar o tempo morto (pausas e mesmo descansos) durante a jornada de trabalho; e
- e) estender a jornada de trabalho.
- OBS: Esta fórmula não encontrou limites e está pondo em risco, agora, de modo alarmante, o meio ambiente em geral e a própria sobrevivência humana
6.5 MECANISMOS DE GESTÃO
- O ambiente de trabalho é utilizado como laboratório para a imposição e reprodução dos ideários liberais, por meio de:
- a) fixação de metas;
- b) sistema de autoavaliação e culpabilização de si mesmo;
- c) estímulo à competição – sistema de comparação entre os(as) trabalhadores(as), rankings internos;
- d) difusão de insegurança - a crise do capital é utilizada em favor dos capitalistas como arma para gerar incertezas aos(às) trabalhadores e trabalhadoras e criar a sensação de constituir um privilégio ser explorado, já que milhões de pessoas estão alijadas do mercado de trabalho (e estão por sua própria culpa – inabilidade, incompetência ou baixa qualificação);
- e) relações baseadas no medo da perda do emprego;
- f) relações sustentadas por disfarces e dissimulações.
7. AS ESTRATÉGIAS DE GESTÃO COMO INSTRUMENTO DA HUMILHAÇÃO
- A fórmula de uma estrutura hierárquica baseada em autoridade é substituída pela ideia de “gestão colaborativa”
- Os(as) empregados(as) passam a ser denominados(as) “colaboradores(as)”, para disfarçar a hierarquização
- Ordens e punições persistem, mas são “minimizadas” pelo estabelecimento de “metas”. Assim, o não cumprimento das metas é o que basta, objetivamente, para a reprimenda do(a) trabalhador(a), que, inclusive, é feita por ele próprio, no sistema de autoavaliação comparativa com o desempenho de outros(as) empregados(as)
- As metas, em geral, são inatingíveis, para que se possibilite exigir mais trabalhado e para reforçar a sensação de impotência do(a) trabalhador(a)
- Quando são atingíveis, as metas são revistas para mais, sob o argumento da maior eficiência
- O resultado é uma sensação constante de insatisfação, de impotência e de insegurança
- A insegurança também se reforça pela ideia de descartabilidade, com ameaças veladas e explícitas de substituição do(a) trabalhador(a) pela máquina
8. ASSÉDIO (SOB AS DIVERSAS FORMAS)
- As condições baseadas em mecanismos de gestão estratégica propiciaram o desenvolvimento de um mal estar no trabalho que se convencionou chamar, desde os estudos de Marie-France Hirigoyen, de 1998, de assédio moral, que se complementa pelo assédio sexual
- A identificação deste problema se deu, sobretudo, a partir da verificação da séria de suicídios de trabalhadores e trabalhadoras da France Telecom, que foram deixados sem ocupação, como forma de pressão para que se demitissem do emprego
- As metas e demais estratégias de gestão, todas fundadas em fórmulas dissimuladas:
- promovem a destruição da autoestima de trabalhadores e trabalhadoras
- dificultam a percepção do processo por parte dos(as) trabalhadores(as)
- impedem o desenvolvimento de meios concretos de reação, favorecendo a formação de um ambiente de trabalho (mesmo no trabalho à distância) propício às violações dos direitos fundamentais
8.1 PRIMEIRAS APREENSÕES PARA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO DO ASSÉDIO
- 1) reconhecer que se trata de uma violência e não de mera reestruturação da organização produtiva voltada à eficiência dos negócios: uma violência silenciosa, que não se configura necessariamente por ofensas diretas
- 2) fixar a presunção de que as doenças, inclusive psicológicas, experimentadas por trabalhadoras e trabalhadores submetidas e submetidos a este modelo de exploração do trabalho, são decorrentes das condições de trabalho e que constituem, por consequência, doenças e acidentes de trabalho, para todos os efeitos legais
- 3) reparações são importantes, mas, prioritariamente, devem ser estabelecidas formas inibitórias eficazes contra a violência
- 4) o assédio não é uma questão que diz respeito ao desvio da conduta individual de um trabalhador ou uma trabalhadora
- 5) o assédio, em todas as suas formas, é uma violência organizacional
- Como muito bem explicam Roberto Heloani e Margarida Barreto:
- “Podemos compreender que a violência laboral, em suas múltiplas expressões, estratégias e formas, é uma subcategoria de uma categoria maior, mais geral, que é a da violência genérica, que se expressa no ambiente de trabalho, sendo inerente às relações antagônicas que existem nas relações sociais. Embora pareça pleonástico o termo ‘violência moral e/ou laboral’ optamos por assim dizer, pois não acreditamos numa violência exclusivamente individual. Sem firulas, que fique bem esclarecido: toda violência laboral é organizacional. Qualquer tergiversação é mera especulação ou vaidade pessoal ou até desconhecimento de um tema tão sério.” (p. 28)
- “As pessoas que advogam nesta linha - da individualização e da reprimenda moral de trabalhadores e trabalhadores – intencionalmente ou não, são intelectuais orgânicos que prestam um desserviço à classe que vive do trabalho.” (p. 29)
- “...se desejamos buscar as causas de uma situação de assédio moral, não devemos buscá-las nas pessoas – enquanto atores individuais e responsáveis – mas, principalmente, na forma como o trabalho é organizado e como as tarefas são constituídas, distribuídas e administradas pela gestão.” (p. 90)
- (HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio moral: gestão por humilhação. Curitiba: Juruá, 2018)
9. A INTRODUÇÃO DO ANTAGONISMO NO INTERIOR DA PRÓPRIA CLASSE TRABALHADORA
- O maior mecanismo de controle da gestão estratégica é o de estimular a formação de um antagonismo no interior da classe trabalhadora
9.1 AUTOAVALIAÇÃO
- No sistema de avaliação continuada da “performance” do(a) trabalhador(a) é previsto que:
- a) o(a) próprio(a) trabalhador(a) é colocado na situação de atestar a sua ineficiência, no sistema de autoavaliação, comparando seus resultados (sempre quantitativos) com os dos(as) demais trabalhadores(as);
- b) o(a) próprio(a) trabalhador(a) é chamado para “colaborar” com o empregador nesta tarefa, avaliando os “seus pares”
9.2 DIVISÃO EM GRUPOS
- A estratégia de divisão da classe trabalhadora, no interior das instituições, se reforça pela estratégia de separar os(as) trabalhadores(as) em grupos – ou em “células” -, colocando cada grupo em concorrência ao outro
- A verificação da performance de um grupo é sempre vista em comparação com outros grupos
- Isto não estimula apenas a concorrência, mas também o desejo de que os demais grupos sofram perdas
- Em cada grupo é nomeado um líder e este(a) trabalhador(a) será o responsável pela realização das cobranças de serviço, de modo a transparecer que os males no trabalho são provocados pela “personalidade” do líder e não por ato do empregador
- O líder, por outro lado, é diretamente cobrado pelo empregador pelos resultados do grupo e responsabilizado pelo eventual insucesso
- Assim, o líder tende a fazer cobranças, por vezes, violentas e vexatórias, para manter a assiduidade e atingir os níveis de produtividade fixados na metas, as quais, muitas vezes, têm a falsa participação dos(as) trabalhadores(as) na sua fixação
- Na perspectiva dos liderados, recai sobre o superior hierárquico toda a responsabilidade pelos mal estar no trabalho
- Tudo se apresenta como um eventual desvio de conduta, inclusive moral, do líder, apontado, por vezes o real e único “assediador”
- A organização produtiva e as estratégias de gestão saem ilesas
- Dissemina-se, assim, um antagonismo na própria classe
10. A TECNOLOGIA A SERVIÇO DO AGRAVAMENTO DO PROBLEMA
- A introdução e a difusão das novas formas tecnológicas de exploração do trabalho, para além dos limites da fábrica, reduziram ainda mais o espaço do reconhecimento dos valores essenciais para a vida humana
- Inicialmente, as novas tecnologias foram utilizadas nas atividades relacionadas aos ditos “altos empregados”, nas funções de direção, gerência e chefia
- Com a disseminação do trabalho remoto, romperam-se todas as barreiras, inclusive territoriais, para a exploração do trabalho
- O novo modo tecnológico de exploração do trabalho favorece a criação de obstáculos para a responsabilização social de quem, efetivamente, na ponta da rede, se vale economicamente da força de trabalho
- Pela via do celular e os diversos Apps de comunicação, o empregador tem, inclusive, se sentido à vontade para manter o(a) trabalhador(a) à sua disposição 24 horas por dia
- O envio de uma mensagem, em qualquer hora do dia, fora do horário do trabalho, pode parecer inofensivo, mas constitui, certamente, uma forma de invasão do espaço da privacidade da trabalhadora e do trabalhador
- Com todo este aparato, o trabalho tende a dominar a vida de forma ainda mais intensa e, ao mesmo tempo, de modo mais dissimulado, porque se vale de uma “realidade” virtual que distancia ainda mais a essência da aparência
- Com a Inteligência Artificial, cria-se, inclusive, a ilusão de uma racionalidade imparcial, mas que, em concreto, reproduz os interesses da classe dominante. E com as plataformas digitais se tem conseguido até mesmo mascarar a própria exploração do trabalho
- A descartabilidade do trabalho e das pessoas trabalhadoras se explicita sem rodeios
11. O TRABALHO REMOTO E A COMUNICAÇÃO VIRTUAL
- Com a tecnologia a serviço da intensificação da exploração do trabalho, todas as questões e dinâmicas do mundo do trabalho avançam sobre a vida privada
- As “comodidades” do trabalho remoto, que se vendem pela superação das dificuldades do caos do transporte nas cidades, convencem sobre a pertinência do trabalho remoto, escondendo ainda mais os seus objetivos e seus efeitos concretos
- Neste contexto até mesmo os custos do trabalho são transferidos ao(à) trabalhador(a) e o ambiente familiar se transforma em ambiente de trabalho
- Também a utilização de mensagens a qualquer hora é uma forma de invasão do espaço da vida fora do trabalho
- Com isso, o trabalho (alienado) toma conta do plano existencial
- E, novamente, verifica-se o abalo da saúde dos trabalhadores e, de forma mais intensa, das trabalhadoras, que, em razão do modo como ainda se estabelece a divisão sexual do trabalho, acabam acumulando, como o trabalho alienado também o trabalho de cuidados
12. O APROFUNDAMENTO DO ESTRANHAMENTO NO TRABALHO
- Bem se sabe que neste modo de produção e socialização, quanto mais trabalho é empenhado, maior a possibilidade de se realizar a reprodução do capital, pois é o trabalho alienado a fonte de toda a acumulação
- Para que este aprofundamento das formas de exploração se concretizasse foi preciso abandonar a fórmula da valorização cultural do trabalho
- O capital depende do trabalho humano para existir, mas reduz a importância do trabalho, para reduzir o valor da mercadoria força de trabalho, levando junto, para o ralo, a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras
- Além disso, o capital tem ciência de que há braços (e mentes) de sobra para explorar
- Levando adiante o próprio discurso, o capitalismo se desnuda e mostra sua face autodestrutiva, pois aniquila força de trabalho, que é essencial para a sua reprodução, e destrói a natureza, de onde advém a matéria-prima necessária ao processo produtivo
OBS: Oportuno, de todo modo, consignar o registro de que por mais que se tenha tentado reduzir a importância econômica do trabalho alienado, como forma de diminuir ainda mais a relevância do trabalhador e justificar o rebaixamento de seus direitos, para reduzir o preço da mercadoria força de trabalho, a realidade da essencialidade do trabalho bateu à porta durante o trágico período pandêmico e esta é uma realidade histórica insofismável que não pode ser simplesmente esquecida
13. COMO, ENFIM, COMPREENDER DIREITO À DESCONEXÃO
- A compreensão do contexto esquematicamente acima apresentado impõe o reconhecimento de que a luta pela desconexão se apresenta como necessária e urgente
- A desconexão em questão não deve ser vista apenas como um direito, mas, sobretudo, como uma chave de pensamento fundamental para reduzir os males do trabalho alienado em nossas vidas
- Afinal, quanto mais trabalho alienado se produz, menor é o espaço da vida (e da saúde, entendida não como ausência de doença) - OBS: a Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”.
- O “direito à desconexão” não se explica, pois, meramente pela implementação de melhorias nas condições de trabalho, mas pela própria redução da influência e da intensidade do trabalho alienado no cotidiano das pessoas
14. O DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO E A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA BRASILEIRA
- O direito à desconexão, como uma chave de pensamento, que reduz a importância do trabalho alienado em nossas vidas, é determinante também para que se atinja o objetivo de conferir efetividade plena aos dispositivos legais que limitam o trabalho, sem se fazer quaisquer concessões aos apelos pela maior produtividade e a efetividade na concorrência econômica
- É preciso partir do pressuposto de que existe vida, e bem mais inventiva e construtiva, fora do trabalho, para que a legislação possa contribuir para este processo de fuga da lógica produtiva e não para reforçar a alienação
- E a legislação trabalhista brasileira possui vários dispositivos relacionados diretamente ao tema do direito à desconexão, como, por exemplo: limitação e redução da jornada de trabalho; períodos de “descanso” (DSR, intervalos intrajornada e entrejornadas, feriados e férias)
- No contexto do direito à desconexão não cabe interpretação que esvazia o conteúdo limitador do espaço do trabalho fixado nas normas jurídicas
15. ENTRAVES E DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO À DESCONEXÃO
- Como dito, não estamos falando de um direito específico, mas de uma chave de pensamento, que vislumbra o ser humano fora do trabalho
- Os direitos relacionados ao “direito à desconexão” são múltiplos e muitos estão, inclusive, elencados fora do quadrante trabalhista
- Relacionam-se ao “direito à desconexão”: o direito à vida, prioritariamente; o direito à liberdade; o direito à privacidade; o direito ao lazer; o direito à formação cultural e profissional. E não é apenas de direitos que se trata. Também se relacionam ao tema as obrigações, vez que os seres humanos em sociedade possuem também tarefas a cumprir, como, por exemplo, o acompanhamento e a educação dos filhos e estas obrigações podem acabar sendo negligenciadas quando o trabalho toma conta da vida. Isto sem falar dos custos sociais que o trabalho alienado, sem limites e sem a valorização e o reconhecimento, gera para a sociedade (vide, a propósito, a enorme quantidade de doenças no trabalho), com a consequente externalização dos custos
- O maior desafio, portanto, é o de mudar a chave de pensamento
- Em um momento em que a precarização do trabalho e a banalização da vida, impulsionadas pela força do poder econômico, se naturalizaram, ganharam espaço nas políticas públicas, dominaram as mentes da intelectualidade jurídica e invadiram o Poder Judiciário
- O próprio Judiciário, no entanto, tragicamente, tem se regido pelos valores econômicos que reduzem o espaço da condição humana (vide, a propósito, a implementação do juiz-gestor e da metrificação das decisões por meio de metas estratégicas pautadas pela produtividade quantitativa, com ranking de produtividade entre os Tribunais e Varas do Trabalho
- E a classe trabalhadora, organizada em categorias, sem se inteirar da completude do processo, não tem conseguido estabelecer uma resistência coletiva a este estado de coisas, reproduzindo, no mais das vezes, a própria concepção autoritária e destrutiva do mérito
- Mas, cumpre lembrar que já no Tratado de Versalhes, em 1919, se fixou o princípio de que o trabalho humano não é mera mercadoria de comércio
- Mais de 100 anos depois, apresenta-se urgente reconhecer que a força de trabalho (enquanto mercadoria de comércio) não é um atributo da condição humana e, sendo assim, é fundamental assumir a tarefa de se conceber um mundo sem a mercantilização do trabalho, sem a concorrência, sem o individualismo e sem a "tirania do mérito" (conforme expressão de Michael J. Sandel), até como forma de salvar o planeta e viabilizar a sobrevivência da humanidade
- Comecemos por levar a efeito, de forma inegociável, o “direito à desconexão”