Litigiosidade trabalhista
A excessiva litigiosidade torna incerto o custo da relação de trabalho antes do seu término e pode desencorajar investimentos necessários à criação de postos formais de trabalho. Esta foi a motivação adotada pelo Conselho Nacional de Justiça para aprovar a Resolução nº 586, de 30 de setembro de 2024, que dispõe sobre métodos consensuais de solução de disputas na Justiça do Trabalho.
Para justificar a iniciativa, o CNJ cita o relatório Justiça em números, que aponta a evolução do quantitativo de demandas trabalhistas pendentes, que no ano de 2023 teria alcançado 5,4 milhões de processos. O objetivo seria tornar claros os requisitos para que acordos extrajudiciais homologados tenham efeito de quitação ampla, geral e irrevogável.
O ato prevê que o acordo a ser levado à homologação pode resultar de negociação direta entre as partes ou de mediação pré-processual. Para aferir o impacto da experiência, nos seis primeiros meses de vigência, o procedimento só seria aplicável aos acordos superiores a 40 (quarenta) salários mínimos.
O CNJ invoca a necessidade de enfrentamento à suposta excessiva litigiosidade na Justiça do Trabalho. Mas não se ocupa de suas causas. A prática médica ensina que a doença é causada por uma combinação de fatores, que incluem agentes externos e disfunções internas. Identificar sintomas, conhecer os efeitos, mas desconhecer causas, recusar-se a enfrentá-las, pouco contribui para tratá-la.
O ato do CNJ tenta retirar do papel controverso procedimento criado pela Lei nº 13.467/2017. O legislador, ao introduzir o mecanismo na CLT, tencionou bloquear ao máximo o acesso à Justiça, estimulando a celebração de acordos extrajudiciais para legitimar violações, fraudes e sonegações a direitos.
A litigiosidade decorre do descumprimento sistemático da legislação? Deriva de políticas de desregulamentação e flexibilização das normas? Tem origem na expansão do trabalho informal, precário, terceirizado? Decorre da ineficiência das instituições de aplicação das normas? Está associada ao baixo custo dos encargos pelo desrespeito à legislação? Tem a ver com a cultura de tolerância à violação, à fraude e à sonegação de direitos trabalhistas?
No estudo “Litigiosidade trabalhista - diagnósticos e contribuições iniciais para sua reconfiguração”, realizado a pedido do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Conselho Nacional de Justiça, concluído em julho de 2024 e conduzido por professores da Universidade Federal de Minas Gerais, essas questões foram analisadas de forma quantitativa e qualitativa[1].
Por meio de sistemático e fundamentado diagnóstico, o estudo apresenta múltiplas causas e variadas iniciativas para enfrentar o problema. A litigiosidade é expressiva em razão de descumprimento “de modo crônico, sistemático e persistente” da legislação. Para as empresas, avaliando ganhos e perdas, descumprir a lei vale a pena. Estas, entre tantas outras, são causas apontadas. Soluções também são indicadas pelos professores da UFMG.
O CNJ ignorou as causas reais e as soluções adequadas para o enfrentamento da litigiosidade. Terminou elegendo a estratégia mais cômoda de tentar transferir as responsabilidades para os trabalhadores. Estes, contando com a chancela de juízes e tribunais, aceitando acordos extrajudiciais, renunciando direitos, concedendo aos empregadores quitação ampla, geral e irrevogável, teriam a chave para destravar investimentos e gerar riquezas.
Jurisdição voluntária
A Resolução CNJ nº 586/2024 repete regras contidas no texto legal, como a exigência de assistência das partes por advogados, vedada a representação por advogado comum. Mas contém previsão não contida na lei, ao admitir efeito de quitação ampla, geral e irrevogável ao acordo homologado, ressalvadas hipóteses de nulidade.
O processo para homologação de acordo extrajudicial desenvolve-se por meio de exercício de jurisdição voluntária. Trata-se de tutela assistencial de interesses privados e pressupõe a necessidade de reconhecer, efetivar e proteger direitos. Os direitos trabalhistas são concebidos como patamar civilizatório mínimo para as pessoas que vivem do trabalho.
Diz-se que a “jurisdição voluntária é uma atividade estatal de integração e fiscalização. Busca-se do Poder Judiciário a integração da vontade, para torná-la apta a produzir determinada situação jurídica. Há certos efeitos jurídicos decorrentes da vontade humana, que somente podem ser obtidos após a integração dessa vontade perante o Estado-juiz, que o faz após a fiscalização dos requisitos legais para a obtenção do resultado almejado”[2].
Destina-se, portanto, a pacificar com justiça o conflito mediante a prestação da tutela jurídica adequada e efetiva em “um conflito mais ou menos aparente ou intenso, mais explícito ou menos explícito na demanda apresentada ao juiz”, considerando a realidade social em que está imerso o conflito[3].
Na jurisdição voluntária, o juízo exerce tutela assistencial, participando com seu conhecimento, sua experiência, sua vontade para o nascimento, a validade e a eficácia do ato jurídico. Diante desse caráter assistencial, a atuação do juízo busca tutelar juridicamente os interesses dos sujeitos, garantindo a observância dos direitos envolvidos.
Isso implica especificidades, como a prevalência do princípio inquisitivo e da dispensa do critério de legalidade estrita. No julgamento, há discricionariedade, com exercício de juízo de equidade, podendo o órgão jurisdicional adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna (parágrafo único do art. 723 do CPC).
Indisponibilidade de direitos
O trabalho é uma manifestação da pessoa da mesma maneira que são o pensamento, a palavra, a consciência e outras similares. Como tal, não pode se subordinar à lógica privada do mercado, tratado como simples mercadoria. Por sua dimensão pública, os direitos fundamentais dos trabalhadores positivados são inderrogáveis pela autonomia privada, individual ou coletiva[4].
Essa natureza impõe a observância da indisponibilidade dos direitos, princípio basilar do sistema justrabalhista, de acordo com o qual são nulos os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação das normas trabalhistas (art. 9º da CLT).
Destarte, o acordo pressupõe controvérsia razoável acerca da natureza, validade ou eficácia da relação jurídica ou de um direito. Sendo certo o direito, inexistindo res dubia, não haveria acordo, transação, mas renúncia, submissão, vedada pela ordem jurídica, tanto civil quanto trabalhista.
Nesse sentido o art. 840 do Código Civil de 2002, ao dispor ser lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas. Por meio da transação, admitida tão só quanto a direitos patrimoniais disponíveis, extingue-se a obrigação, mediante a transformação de um estado jurídico inseguro em outro seguro pela troca de prestações equivalentes.
No Direito do Trabalho, diante da desigualdade de fato, social e econômica entre os contratantes, a indisponibilidade inata aos direitos implica a limitação da liberdade do trabalhador antes, durante e após a relação de emprego. Isso implica a inviabilidade de concessão de quitação ampla, geral e irrestrita na ausência de dúvida razoável e de concessões recíprocas.
O ato do CNJ, ao prever para o acordo efeito de quitação ampla, geral e irrovogável, intenta subverter toda a principiologia justrabalhista, contribuindo para a estratégia de desconstrução do arcabouço constitucional e infraconstitucional de proteção às pessoas que vivem do trabalho.
Nesse contexto, tratando-se de pretensão de quitação ampla, geral e irrestrita, com renúncia a direitos, na ausência de dúvida razoável e sem efetiva contrapartida, incide o inciso III do art. 80 do Código de Processo Civil, que caracteriza como litigante de má fé aquele que “usar do processo para conseguir objetivo ilegal”.
Além disso, havendo mera simulação para quitação de direitos indisponíveis, incide a regra do art. 142 do CPC, segundo o qual “convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé”.
Os princípios e regras trabalhistas, ao estatuírem direitos de indisponibilidade absoluta, consagram parcelas “imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1º, III, e 170, caput, CF/88”[5].
Nesse quadro, é do juízo o poder-dever de recusar a homologação de acordo quando o mesmo implicar preterição de direitos indisponíveis, não especificar a natureza das parcelas, não contemplar o recolhimento dos encargos sociais, não definir responsabilidades trabalhistas e tributárias, não especificar prazo para cumprimento ou incorrer em outras situações que o órgão jurisdicional, em decisão fundamentada, considere impeditiva da homologação.
Cabe ao juízo verificar as circunstâncias do acordo, homologando-o ou não (Súmula nº 418 da Corte Superior Trabalhista), na medida em que “O juiz do Trabalho não está obrigado a homologar transações lesivas a direitos fundamentais ou claramente infringentes de normas de ordem pública, não podendo ser transformado em um mero "carimbador" desse ato de manifestação de vontade dos interessados ou em instrumento mecânico de aceitação automática de qualquer transação que lhe seja submetida.” (RR-1000468-93.2021.5.02.0465, 3ª Turma, Relator Ministro Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 27/10/2023).
Para concluir, em um cenário de desconstrução do Direito do Trabalho por meio de alterações legislativas, decisões judiciais e práticas empresariais, ao estimular a generalização do procedimento de homologação de acordos extrajudiciais, a pretexto de destravar investimentos, a Resolução CNJ nº 586/2024 não enfrenta as reais causas da litigiosidade trabalhista, não contribui para a reestruturação do mercado de trabalho e nada acrescenta à ação coletiva para a construção de uma sociedade inclusiva, igualitária, humanista e social.
Teresina, 07 de outubro de 2024.
(*) Arnaldo Boson Paes é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (Piauí), doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla La Mancha, Espanha (UCLM). É também professor da Faculdade Maurício de Nassau/Teresina.
[1] ANTUNES, Daniela Muradas; ORSINI, Adriana Goulart de Sena; e BOSON, Victor Hugo Criscuolo. Litigiosidade trabalhista: diagóstico e contribuições iniciais para sua reconfiguração. Belo Horizonhe: UFMG, 2024.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Juspodium, 2015, p. 186.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. 3. ed. vol. I. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 320.
[4] STF, RE nº 234.186-3, 1ª Turma, ministro Sepúlveda Pertence, DJ 31.08.2001.
[5] DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentarios à Lei nº 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 269.